As imagens do pequeno vídeo não estão muito nítidas mas as lembranças desse dia e deste tempo continuam bem registradas na minha memória. Eu ali em pé, colado na roda de samba, uma velha camisa da Torcida Jovem do Botafogo, atrás do saudoso Marcinho do Pandeiro. Atrás de mim, a lendária tamarineira, guardiã da poesia, segundo os versos do também saudoso Luiz Carlos da Vila.
Vídeo: Martin Heap
Acervo Victor Lobisomem
Entre o surdo de Carlinhos Tcha Tcha Tcha e o banjo de Márcio Wanderley, quem aparece tocando o repique de mão é o próprio (re)inventor do instrumento: Ubirany, do grupo Fundo de Quintal e um dos fundadores daquela casa.
As mãos que aparecem no tamborim eram de Renatinho Partideiro. Nene Brown no tantan, substituindo, neste dia, o Banana, filho do Neoci de Bonsucesso. E filha do Neoci também a Sheila, que produzia a roda, às vezes ficava ali no bar, servindo as bebidas, aquela sopa de ervilha feita pelo Ronaldo e conversando uma conversa boa, sem pressa e sem filas pra apressar.
Me lembro que o Ademir Batera, ao me ver com a camisa do Botafogo, encostou ao meu lado e perguntou quanto havia sido o jogo. Eu tava vindo do (velho) Maracanã. Final da Taça Guanabara entre meu time e o América. E de lá, corri direto para a Rua Uranos, 1326, como fazia religiosamente todos os domingos. Cruzava caminhando lentamente, aqueles dois portões grandes de ferro, sempre escancarados. Mentalmente pedia licença aos guardiões da porteira pra entrar naquele lugar tão místico para mim, cheio de histórias e personagens importantes. Quem fosse de carro, também entrava por ali e estacionava lá dentro, sem dificuldade alguma para encontrar uma vaga, gratuita e segura.
Eu gostava de chegar cedo e normalmente só ia embora quando terminava. Ficava ali, em volta daquelas 3 ou 4 mesas dobráveis de ferro, das que se encontram em qualquer botequim, vendo e ouvindo a roda de samba. Amplificação só para o violão do Wlad, ligado numa minúscula caixa que ficava escondida embaixo de uma destas mesas. Nada de microfones. Qualquer um que se garantisse (ou nāo) podia chegar, pedir um tom e cantar um samba. E aí todos cantavam juntos. Umas 50, 100 ou, nos domingos mais lotados, talvez umas 200 pessoas. Sem equipe de seguranças, a figura de Seu Onça já era mais do que suficiente para manter a ordem e o respeito naquele ambiente familiar. Sem garçons circulando, mas com crianças correndo e brincando. E sempre com visitas ilustres que chegavam sem divulgação e sem aviso prévio para também encostar ali, pedir seus tons e cantar sem boca de ferro, só no gogó.
Domingos mágicos que eu, durante alguns anos, não perdia um. E torcia, orava para que fizesse bom tempo. Porque em dias de chuva ou com esta previsão, não tinha pagode. Em dias nublados, eu na minha fissura, insistia em ir lá pra conferir se ia ou não ter o samba. Mesmo já sabendo que nos dias muito nublados, não podia-se arriscar de preparar a sopa, comprar a bebida, o gelo, mobilizar músicos e equipe com a mínima possibilidade de chuva. Mas na minha teimosia e imortal esperança, eu ia mesmo assim. E mesmo nestes dias de portão fechado, acabava tendo bons encontros ali em frente. Com outros gatos pingados fissurados como eu, que também iam na mesma finalidade.
Eram mais ou menos assim os domingos no meu tempo de frequentador assíduo do Cacique.
Desde criança ouvia as músicas do bloco. Principalmente nos carnavais. Adolescente passei a ouvir e gostar do grupo Fundo de Quintal. Comprar os discos, ir aos shows, mas só no início dos anos 2000 comecei a frequentar a quadra. E os desfiles do bloco também, onde normalmente acompanhava a ala da capoeira, comandada pelo saudoso Mestre Mintirinha que sempre me acolhia com gentileza.
O auge de minha relação com o Cacique aconteceu nas proximidades do cinqüentenário em 2011. A quadra já reformada e coberta. Mergulhei mais profundamente na história do bloco e de seus fundadores e contei-a em versos num folheto de literatura de cordel. Tive momentos mágicos nesse processo, conversas com meus ídolos e elogios vindos deles.
Numa dessas, Bira Presidente ao telefone com Sereno, falou sobre o cordel e no meio da ligação passou seu celular para mim. Li todo trecho que falava sobre a família de Sereno: os irmãos Chiquita, Walter Tesourinha, Betinha, Jorge e o pai Seu Juanita do Catete, bairro onde eu também nasci. A conversa fluiu e quando desliguei e fui devolver o celular de Bira Presidente, ele se surpreendeu:
– Rapaz você estava até agora na ligação com ele?
– Estava sim, Presidente!
– Entāo é porque ele tava gostando muito de conversar com vocē porque ele não costuma ficar esse tempo todo no telefone com quase ninguém!
Fiquei felizāo. Conversei com Sereno do Fundo de Quintal no celular de Bira Presidente!
Em outra ocasião próxima, Tuninho Cabral me ligou:
– Está tendo uma gravação para a TV aqui na quadra. Vem pra cá e traz o cordel do Cacique.
Peguei o 621 e logo cheguei. Aqueles baluartes todos lá dando entrevistas e eu na disciplina só assistindo. Nāo participei do programa mas o que se seguiu foi bem mais recompensante. Numa rodinha de descontraidas conversas, Bira aponta o dedo pra mim enquanto olha pra Beth Carvalho:
– Ô Beth, tem que ver que coisa linda que esse rapaz escreveu. Lê ai pra madrinha, menino!
Imaginei que leria só um pequeno trecho mas não me interromperam nem deixaram eu parar de declamar antes do final da história. Bira sorria e seu olhar parecia buscar no passado as imagens dos acontecimentos que eu descrevia.
Ao final, a madrinha do samba me questionou:
– Menino quantos anos você tem?
– Trinta e oito, madrinha!
– E como é que vocē sabe tudo isso tāo bem?
Outro dia histórico pra mim, entre tantos outros que vivenciei. Abordei Ubirany para cumprimentá-lo num pagode de domingo e ele me olhou com aquela expressão de ” te conheço mas agora nāo lembro quem vocē é”. Cochichei no seu ouvido que era o autor do cordel e ele me abraçou carinhosamente encostando sua testa na minha. As pessoas à volta olhavam para aquele gesto. Que lembrança boa.
Como nāo dá pra contar todas as minhas boas lembranças e experiências caciqueanas num só texto, vou encerrar revelando um segredo.
É sabido, por quem conhece a história do Cacique, que Dona Conceição, yalorixá e māe carnal de Bira e Ubirany, colocou um patuá de proteção dentro do tronco de uma das famosas tamarineiras. Quando publiquei o cordel com a história do bloco, me dirigi ao Bira em particular e pedi permissão para fazer o mesmo com um exemplar de minha obra:
– Seu Presidente, será que o senhor me autoriza a colocar um exemplar de meu cordel sobre o Cacique dentro do tronco da tamarineira?
Acredito que pela expressão que ele fez, deve ter achado o pedido inusitado e até mesmo atrevido.
Após alguns segundos que pareceram uma eternidade, ele me autorizou.
– Pode sim.
E me acompanhou nesse gesto que pra mim foi sagrado, emocionante e histórico. Meus escritos guardados dentro da tamarineira do Cacique de Ramos.
” o Cacique pra uns é cachaça pra outros é religião…”
Victor Lobisomem é caciqueano e aprendiz de escritor e compositor.