Yuri Baptista
No Carnaval desse ano de 2024, eu e minha esposa, Aline Mendes Soares, levamos novamente nossa filha, Ísis, de nove anos – que nesse mesmo ano desfilou, pela primeira vez, na Marquês de Sapucaí pela Mangueira do Amanhã, escola de Samba Mirim da G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira – ao desfile do bloco G.R. Cacique de Ramos, na Avenida Chile. Foi emocionante vê-la tentando sambar (falei para ela que vou ensiná-la a sambar do mesmo modo que o vovô Tatão, o ancestral paterno dela, me ensinou: pisando em um pano). Enquanto coloco o samba do Cacique Água na Boca para tocar como trilha sonora para a composição desse texto, sem demora, Ísis, presente no quarto junto comigo mexendo no celular, começa a cantar: “Vamos brincar juntinhos. Água na boca para quem ficar sozinho”. Lembro-me do quanto foi marcante conhecer o Cacique com meus pais: a Dona Nanci Baptista, minha mãe, moradora de Oswaldo Cruz – antes de se casar – e meu pai, Ylcatan Menezes, o Tatão, morador do Catete, zona sul do Rio de Janeiro, antes de se mudar com ela para Brás de Pina, bairro situado na zona norte do Rio, no qual fui nascido e criado. Certa vez, observando-os abraçados na cama vendo televisão, perguntei como eles haviam se conhecido. Foi quando eles me disseram quase ao mesmo tempo: — Foi na feijoada da Escola de Samba G.R.E.S. Portela, em Oswaldo Cruz. Escola de samba na qual meu pai foi passista. Sempre que ele via o Paulinho da Viola na televisão, abria um sorriso largo, dizia sempre que o conhecia. Acontecia o mesmo quando ele via a Leci Brandão.
Não à toa, amo o carnaval, devo isso aos meus pais, ancestrais paternos da Ísis, como costumo dizer para ela, seguindo as referências da Filosofia Iorubá. Ainda no ritmo dessa matriz de pensamento não ocidental, me recordo nitidamente deles me levando para o Cacique durante o carnaval, quando o bloco desfilava na Avenida Rio Branco. Lembro também deles me levarem na quadra do bloco, tudo isso em uma época na qual eu tinha mais ou menos a idade da minha filha. O carnaval passou e, mais uma vez, assim como no ano passado, acreditei que deveria fazer “o trabalho completo” com a Ísis, seguindo no mesmo ritmo dos compassos que os meus pais fizeram comigo: primeiro me levando para ver o bloco Cacique de Ramos sair, na Rio Branco, em um dia de carnaval e depois me levando com eles para conhecer a sede do bloco, o “Doce Refúgio do samba”.
Diferente do ano passado, esse ano teve um incentivo sensacional: a primeira Festa Literária do Cacique de Ramos, a FliCacique, evento realizado no dia primeiro de março, no aniversário de 459 anos da Cidade do Rio de Janeiro. Foi uma iniciativa do Centro de Memória Domingos Felix do Nascimento do G.R. Cacique de Ramos em parceria com a Secretaria Municipal de Educação. Como músico e trombonista tive a experiência de tocar em diversos blocos de carnaval de rua no Rio de Janeiro, como o Cordão do Boi Tatá, o Céu na Terra, o Vem Cá, Minha Flor e até mesmo em um bloco de carnaval da zona oeste da cidade, o Cordão da Bola Laranja. No primeiro desfile do bloco de Campo Grande, o Cordão da Bola Laranja lá foi Isis com seus seis anos assoprando o seu saxofone de brinquedo. Sem fazer juízo de valor, considerando a importância da memória histórico-cultural de cada bloco mencionado e não mencionado, os quais surgiram depois do Cacique de Ramos, todos contribuíram também para o resgate do carnaval de rua da cidade do Rio de Janeiro, dos anos 2000 até a atualidade.
Yuri, Isis e Aline na quadra do Cacique de Ramos na Flicacique (2024) – Fotografia: Paulo Henrique Santos
Interpreto essa oportunidade de levar a Ísis para conhecer a sede do Cacique, no dia da realização da FliCacique, como um sinal das nossas ancestralidades, dos meus guias espirituais. Chegamos e fomos “recebidos” por um grupo de crianças, alunos e alunas dos colégios municipais da região e adjacências que passaram correndo e sorridentes por nós, em tom de brincadeira. Os discentes pararam para brincar bem debaixo da tamarineira, todas as crianças estavam com seus rostinhos pintados e algumas com o mesmo grafismo que o Cacique, o símbolo do bloco, e os integrantes das alas da agremiação utilizam durante os desfiles, nos dias de carnaval. Essa foi uma imagem que fez meus olhos ficarem rasos d’água; a foto já estava ali, só esperando alguém registrá-la. Enquanto pegava o meu celular para tal finalidade, observava a imagem desfazer-se bem diante dos meus olhos e passar a fixar-se na minha memória como o quadro de uma obra de arte. Segui refletindo sobre o significado da imagem, momento no qual um grupo de crianças sorridentes, com seus rostinhos pintados, brincavam embaixo da tamarineira. Essa foi a confirmação da importância da realização da FliCacique como uma ótima oportunidade para os discentes dos colégios municipais, sejam eles crianças, adolescentes ou adultos da Educação de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e demais pessoas que também estavam presentes na quadra do Cacique de Ramos, algumas pela primeira vez, prestigiando a sua pioneira Festa Literária.
Depois da Ísis observar bem de perto o grande Pajé e perguntar: – Como esse Índio é colocado no carro para os desfiles do Cacique, nos dias de carnaval? Após respondê-la, eu perguntei para ela se havia notado as crianças correndo embaixo da tamarineira e ela disse: – Sim, Yuri. Comentei com ela sobre a tamanha importância da árvore para o bloco, não à toa existe aquela plaquinha ali onde está escrito: “todas as pessoas que por aqui passarem, forem puras de coração e tiverem dotes especiais, colherão frutos”. Essa importância toda para com a tamarineira é um legado de um comportamento de proximidade e cuidado com a natureza que está presente em povos indígenas e africanos. Prossegui explicando para ela que a FliCacique proporcionava às demais crianças e adultos conhecerem a sede da agremiação e participarem de várias atividades como a contação de histórias, exposições, oficinas de bordado e de percussão, além de terem oportunidade de participarem de rodas de conversas. Como a roda de Filosofia organizada pelo amigo do papai, o Pedro Miranda, que também é Filósofo e estudou na mesma Universidade na qual estudo, a Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ. O Pedro desenvolve o projeto Pensadores Cariocas junto à Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e promoveu a roda de Filosofia com discentes da EJA. Vendo-me com minha filha e com a minha esposa, sem demora, convidou-nos para participarmos dessa atividade.
Isis, Yuri e o filósofo Pedro Miranda na roda de Filosofia da FliCacique (2024) – Fotografia: Paulo Henrique Santos
A dinâmica da Roda de Filosofia era responder um questionamento com uma pergunta. A partir de então, enquanto historiador e mestrando em Filosofia, elaborei perguntas de cunho histórico-filosófico, tendo como ponto de partida o Doce Refúgio do Samba. Ele começou perguntando se alguém gostaria de iniciar a atividade fazendo uma pergunta, no intuito de quebrar o gelo da vergonha dos alunos e alunas da EJA. Disse que eu gostaria de começar, peguei o microfone e perguntei: o Cacique de Ramos é Filosofia? Depois, uma aluna perguntou: o que é a Filosofia? Percebendo que os alunos e as alunas ainda estavam envergonhados/as indaguei: a FliCacique é Filosofia? Notando que a atividade filosófica desdobrava-se no momento em que acontecia também uma roda de samba e as músicas serviam como trilha sonora para a roda de Filosofia, perguntei: compor um samba é Filosofia? Comecei a perceber as pessoas demonstrarem seu interesse passando a se aproximar mais da roda de Filosofia e os discentes passavam a participar mais da atividade a qual desdobrava-se, na quadra do Cacique, ou seja, para além da sala de aula. Aproveitei esse momento para perguntar: o samba é Filosofia?
Participantes da roda de Filosofia na FliCacique (2024) – Fotografia: Paulo Henrique Santos
O número de participantes aumentou significativamente, passaram a compor a roda de Filosofia mais crianças e adultos, para além dos discentes da EJA, como foi o caso das mães das crianças que estavam participando da atividade. Os funcionários da Secretaria Municipal de Educação também sentiram-se atraídos pela atividade filosófica. Não à toa, enquanto alguns começaram a filmar, outros batiam fotos. Depois da minha filhinha fazer a sua pergunta (isso mesmo, até ela participou), atitude que pareceu servir como um estímulo para as demais crianças também participarem. Foi muito emocionante notar o quanto tal atividade filosófica, desdobrando-se no Doce Refúgio, despertava tanto a atenção das pessoas que ouviam atentamente a roda de Filosofia. Lembrei das históricas feijoadas promovidas pelo Cacique e perguntei: temperar uma comida é Filosofia? Observando um nítido ponto de interrogação na expressão facial das pessoas antes da roda terminar: o conhecimento de uma planta que serve para tomar um banho somente da cabeça aos pés é Filosofia?
Participantes da roda de Filosofia na Flicacique (2024) – Fotografia: Paulo Henrique Santos
Sem sombras de dúvidas, essa primeira edição da FliCacique, em alto e bom tom, deixou nítido, para um número considerável de pessoas que prestigiaram o evento literário, que o Cacique de Ramos não se resume, única e exclusivamente, a um bloco de carnaval. A FliCacique terminou com vírgula, deixando aquele gostinho de “quero mais” como quem deseja repetir aquela feijoada. E, justamente por conta disso, até me provarem o contrário, trata-se da primeira de muitas festas literárias do Cacique de Ramos. Foi um acontecimento único e sensacional, marcante o suficiente para ficar registrado na memória de todas as crianças, com e sem necessidades especiais, dos adolescentes, dos adultos, bem como das pessoas idosas que também compareceram ao evento. A confirmação disso é a alegria dos discentes que pararam para brincar, debaixo da tamarineira; quando a minha filha, os adultos e os adolescentes deixaram a vergonha de lado e começaram a participar da roda de Filosofia; as pessoas participando das oficinas de bordado, de percussão, visitando as exposições…
Devo deixar registrado aqui também os meus mais sinceros agradecimentos ao Walter Pereira, grande irmão, pelo convite para compor esse texto. Desejo vida longa ao Centro de Memória Domingos Felix do Nascimento, do G.R. Cacique de Ramos, instituição absolutamente necessária e importantíssima. Muita força e saúde para todos os integrantes do Centro de Memória, bem como para os demais componentes do Cacique de Ramos que tornam o bloco tão especial.
Bira Presidente, hoje e sempre!
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Sobre o autor
Yuri Baptista Menezes é historiador, mestrando em Filosofia e músico.