Fabio Martins*
Novos tempos se mostravam para o Cacique de Ramos naquele ano de 2010. A sede do bloco, por iniciativa da Prefeitura do Rio de Janeiro, sob a administração Eduardo Paes, estava em obras com vistas à sua cobertura. O asfalto que delimitava o campo de futebol precursor do pagode que mudou a forma de se fazer samba deixaria de existir para dar lugar à quadra poliesportiva que também serviria para as aulas de educação física dos alunos do Colégio Clóvis Beviláqua, vizinho à agremiação. Tudo parte das contrapartidas necessárias à Cessão de Uso do Espaço Público ao Cacique de Ramos, agora Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro.
Documentos, contratos, obrigações sérias caso descumpridas. Foi nesse cenário que recebi a convocação do Bira Presidente: “Dá uma força lá no Cacique? Precisamos organizar a casa!” E esse foi o compromisso que assumi, arrumar a casa para que comemorássemos 50 anos e projetássemos outros 150, no mínimo! Não sei se cumpri minha missão naquela década dedicada ao Cacique de Ramos e, por conseguinte, à cultura nacional, da qual o Cacique é referência.
A verdade é a percepção dos fatos por nossos sentidos e interpretada pelo cérebro. Por isso, aqui, conto a minha verdade daquilo que vi, vivi e aprendi no Cacique de Ramos. Lá vivenciei as mudanças impostas pelas “novas” tecnologias e seus reflexos no dia a dia do bloco, ferindo de morte sua essência enquanto nascedouro de sucessos do samba, gestados por canetas nem sempre conhecidas pelo público estranho às Rodas de Samba do Cacique.
Para lançar luzes aos personagens sobre os quais não pairam holofotes, deixarei de fazer menção ao “Cacique Maior”, Bira Presidente – a quem reverencio desde sempre por sua liderança, cuidado, carinho, dedicação e inteligência – salvo quando sua inserção for essencial à compreensão do contexto.
Uma parte da Diretoria do Cacique de Ramos em 2011 (da esquerda para a direita): Serginho Madureira, Fabio Martins, Ronaldo Felipe, Antônio Onça, Renatinho Partideiro e Tuninho Cabral Acervo Centro de Memória do Cacique de Ramos.
O aprendizado
Ao chegar imbuído de energia para “organizar a casa”, parti de pressupostos equivocados, pois o elemento central que unia – e une! – aquelas pessoas da Diretoria e foliões, organizados sob alas ou não, é o amor pelo Cacique de Ramos e sua história, pelo samba e pelo Carnaval. Regras rígidas e impostas “de cima para baixo”, especialmente sugeridas por um neófito apresentado como integrante da Diretoria, não seriam aceitas ou toleradas porque originárias dos responsáveis pela organização. As pessoas dedicaram a vida ao Cacique de Ramos e lá tinham longas histórias, raízes e hábitos, nem sempre positivos sob a ótica da “gestão da marca”. Quebrei muito a cabeça e também a esquentei bastante até entender a dinâmica das pessoas, dos processos decisórios e da implementação do que havia sido chamado a fazer.
Minha missão era “organizar a casa” e, para isso, precisava tomar, a par da organização das relações jurídicas do bloco, os rumos para o uso da marca Cacique de Ramos. O que eu defendia era correto sob o ponto de vista do gestor de uma marca consolidada e em processo de revalorização, mas a forma inicial para implementá-la foi desastrosa por falta de compreensão por parte das pessoas ligadas ao bloco por amor da necessidade de centralizar decisões e rumos. Até hoje sinto que há ressentimentos de alguns cujos limites precisei enfrentar.
Portanto, ao know how adquirido no dia a dia de empresas estruturadas tive que somar o trabalho de convencimento, a conversa, o entendimento dos porquês das resistências enfrentadas. Mas isso em relação às pessoas externas ao núcleo inicial decisório: a Diretoria. A Agremiação aprimorou o poder de negociação, entendimento e convencimento em prol do bem maior: o Cacique de Ramos!
Qualquer iniciativa, para ser implementada, devia se mostrar salutar aos interesses do bloco e seguia o trâmite natural: i) convencimento do Bira Presidente, ii) convencimento da Diretoria, iii) convencimento das alas, iv) convencimento dos frequentadores tradicionais, cujas opiniões e história eram, e são, importantes para o bloco e, como todos, de uma forma ou outra, se voltavam ao Bira Presidente, v) manter a autorização do Bira Presidente. Mas preciso deixar claro que o organograma do processo decisório ainda continha um adicional em sua dificuldade: manter firme a decisão de cada um dos elos enquanto o outro não avançava! O convencimento inicial nem sempre se mantinha ao longo dos dias de desenvolvimento do processo decisório e sua implantação. A essas dificuldades somava-se, ainda, a máxima na Diretoria: levantou a bola, segura! Ou seja, não adiantava sugerir qualquer coisa para atribuir a outra pessoa a responsabilidade pela execução.
Membros da Diretoria do Cacique de Ramos com Beth Carvalho, madrinha da agremiação, nos bastidores da Quarta Nobre (2016) [da esquerda para a direita]: André Cezari, Fabio Martins, Serginho Madureira, Bira Presidente, Walter da Silva, Daniel (Neca), Tuninho Cabral Acervo Centro de Memória do Cacique de Ramos.
As pessoas
O mais caro nas memórias desse tempo dedicado ao Cacique de Ramos é a lembrança das pessoas. Gente diversa, com realidades e histórias marcantes. Pessoas inteligentes, com ou sem educação formal, mas cada uma certamente inteligentíssima. Como elo de união dessas pessoas estava o amor ao Cacique de Ramos.
Na Diretoria (Waltinho, Antonio “Onça”, Tuninho Cabral, Daniel “Neca”, Ronaldo, Marcio, Nayra e André, Chopp, Johny, Renatinho Partideiro) nos desentendíamos com uma frequência assustadora. Os mais velhos, os mais novos, os mais progressistas, os mais conservadores, os mais divertidos e os mais ranzinzas. Brigávamos e nos adorávamos pelo entendimento sobre o objetivo que nos unia.
Parte da Diretoria do Cacique de Ramos durante homenagem à Mangueira (da esquerda para direita): Tuninho Cabral, Serginho Madureira, Daniel (Neca) Andre Cezari, Bira Presidente, Walter da Silva, Antônio (Onça); agachados Ronaldo Felipe, Fabio Martins e Renatinho Partideiro (2011) Acervo Centro de Memória do Cacique de Ramos.
Ainda tinha o pessoal das alas, os frequentadores históricos, os músicos, o pessoal do apoio, os frequentadores eventuais. Os que tentavam obter alguma vantagem, os que tentavam ajudar de modo genuíno. As celebridades e as subcelebridades, os políticos famosos e os que ambicionavam cargos e notoriedade. Ricos, pobres, cariocas, turistas nacionais e estrangeiros, acadêmicos e andarilhos.
Era muita gente! Todos com o Cacique de Ramos no coração, por amor ou conveniência de momento por conta da notoriedade reconquistada.
Era muita demanda.
Era muito trabalho e muito sacrifício pessoal, profissional e acadêmico, pois o que inicialmente era hobby passou a tomar ao menos duas horas de chamadas telefônicas diárias, além das análises dos documentos, contratos, convites, respostas e desenvolvimento das redes sociais.
Sim, comecei os perfis de Facebook do Cacique de Ramos e dei a bobeira de usar meu email pessoal para sua inscrição. Resultado: perdi meu email para o Cacique. Posteriormente o Márcio, a Nayra, o Tuninho Cabral e o Ronaldo seguraram a barra das redes sociais e o fizeram com enorme talento e dedicação. Hoje o bloco reúne uma imensidão de pessoas ávidas por suas informações, sendo superlativo o número desde aquela época em que tudo era artesanal.
Some-se a esse mundo de gente com o qual lidávamos no dia a dia a enlouquecedora e lenta metodologia usada para a tomada de decisões, cujas etapas narrei no capítulo anterior. Esse penoso processo, a par de algum cabelo branco que me tenha ocasionado, foi excelente sob o aspecto pessoal, pois tive oportunidade de conhecer a história e o que muitos desses personagens almejavam para reprojetar o Cacique de Ramos ao lugar de destaque no cenário cultural.
Lembro com carinho do Antonio Onça, o maior coração do mundo, correlato ao seu corpanzil. Serralheiro de mão cheia, fundador da Torcida Raça Rubro Negra, tinha estilo de bravo, uma casca que protegia sua forma carinhosa e grande na mesma proporção de seu tamanho. O Onça era o responsável, na fase pré-cobertura, pelas simpatias para que a chuva deixasse de regar as Tamarineiras na hora da roda de samba, além de ser responsável pelas alas Cura Ressaca e Sou Cacique, e por diversas das fantasias de índio usadas pelas alas tradicionais do bloco.
Outro mal-humorado no rol dos mais engraçados e talentosos do mundo era o Renatinho Partideiro, cuja precoce ausência traduziu enorme perda não somente à arte do Partido Alto, mas especialmente ao samba do Cacique de Ramos. E bem na hora em que a Escolinha de Partido Alto sairia do papel! Faria o que muito gostava: ensinar às crianças a arte da qual era mestre!
Faço menção expressa ao Celso, da Ala Tamoio, que nos deixou cedo também, para, por meio dela, homenagear os integrantes das demais alas, pessoas apaixonadas e que muito me ensinaram sobre o sentido do Cacique de Ramos.
Aqui merece parênteses para o dia em que lancei, de modo jocoso e como prova do poder da internet na comunicação, o telefone do Onça nas redes sociais do Cacique de Ramos como referência de venda de camisas para o carnaval. Foi chegar na quadra e rir muito sobre as pitorescas histórias reflexas às centenas de chamadas. Ele enfim foi convencido sobre aquela novidade tecnológica que surgia e que impactaria o bloco sobremaneira. Apaguei seu número de celular após exigir três cervejas em pagamento!
Há, ainda, como momentos marcantes aqueles reflexos à homenagem prestada pela Mangueira ao samba, sendo o Cacique de Ramos um dos personagens principais do enredo. Como parte da promoção desse enredo, o Ivo Meireles apoiou a feijoada que estávamos planejando e após o sucesso do evento inicial, em cima da hora fomos convocados para uma reunião na Cidade do Samba. Ronaldo e eu fomos entender o que de tão grave impunha a presença da Diretoria do Cacique e lá nos foi comunicada a necessidade de cancelamento do próximo evento.
Entusiastas do que representava a feijoada como homenagem aos personagens importantes na trajetória do Cacique de Ramos e do samba, voltamos “com a faca nos dentes” por conta da abrupta desistência do apoio e ávidos por defender a realização do evento. Afirmamos que bancaríamos do próprio bolso eventual revés financeiro e, com isso, colocamos, Ronaldo e eu, a cabeça a prêmio. Felizmente ficamos com a cabeça e as carteiras no lugar, porque as contas fecharam. Talvez o Bira Presidente, que tanto sacrificou para manter vivo o bloco, seja no aspecto financeiro seja no pessoal, tenha gostado da nossa atitude, pois autorizou a realização da feijoada após ouvir os demais Diretores. E lá se foram mais de 100 feijoadas!
Faltam tintas e espaço para as inúmeras histórias vividas naquela quadra e seus personagens! Sobram lembranças e saudades!
Um registro da roda de samba durante a primeira feijoada do Cacique de Ramos (2011) Acervo Centro de Memória do Cacique de Ramos.
A tristeza
Entendia e entendo que o fortalecimento financeiro das instituições culturais permite que sua produção flua dos artistas que a integram. Cada um exerce sua função: a gestão financeira e administrativa realizada pelos que não têm talento de criar e a criação artística pelos que não têm talento de gerir. A regra comporta exceção, claro, mas é a regra.
O Bira Presidente, desde que o conheci, externava preocupação com o dia em que não lhe fosse mais possível arcar com os custos fixos do bloco, tal como água e luz, não sendo raras as vezes nas quais a interrupção dos serviços foi iminente porque a Agremiação não tinha grana para fazer frente à despesa. Outro compromisso inegociável era com a entrada franca para as Rodas de Samba, da qual sou entusiasta pela democratização da cultura. Lindo na teoria, nem tanto na prática, especialmente quando a quadra estava “bombando” sem a receita das vendas do bar compatíveis com a despesa necessária à realização do evento. Maior número de pessoas na quadra, maior gasto com organização e limpeza, água, etc. Muita gente na quadra, colapso das estruturas de banheiro, bar e, diametralmente oposto, redução do consumo. De toda forma, o caminho para o porto seguro financeiro dependia do conforto e respeito aos frequentadores do Cacique de Ramos e das boas e felizes memórias geradas na antológica quadra.
Somados esforços da Diretoria, através do penoso processo decisório, conseguimos esse espaço capaz de gerar boas memórias. Ao longo de 10 anos de quadra cheia, duas únicas vezes presenciei briga sem maiores desdobramentos. Numa dessas vezes o frequentador, do tamanho de pivô da NBA, levou um tapa da namorada baixinha e ciumenta. Chorou de tristeza e vergonha ao invés de reagir à agressão. Emocionou a todos pela pureza de seu caráter e domínio de sua força física. Local mágico no qual as famílias se congregavam em torno do samba e do respeito ao outro, frequentado por todos, de diversas raças, credos, orientação sexual e capacidade financeira. Por contraditório que pareça, porém, o enorme sucesso do Cacique de Ramos e de suas rodas de samba no pós-50 anos de vida foi o seu revés. O grande público que rumava em procissão à quadra impôs mudanças que aos olhos e sentimentos dos puristas gerou insatisfação. E a mim também, embora esteja longe de ser enquadrado como purista à medida que entusiasta do Fundo de Quintal e suas inovações ao samba.
Não há como esquecer do Wladimir, 7 cordas dos bons, “abraçando”, como única forma de tocar seu violão, uma frequentadora inconveniente que rompeu os limites necessários aos músicos para executarem seus instrumentos. E das reclamações dos artistas pelos litros de cerveja que sobre eles eram derramados. Não tivemos alternativas: a roda de samba deixava a proteção da Tamarineira para ganhar altura num pequeno palco, que cresceu na proporção do público ávido pela visão daqueles craques que então se apresentavam. A qualidade do som, contudo, deixou a desejar por muitos anos, atrapalhando o produto do Cacique de Ramos: a música! Esse distanciamento dos músicos impôs outros obstáculos mais severos não somente ao bloco, mas ao samba como um todo: a criação.
Os compositores e artistas não tinham mais espaço para sua resenha descontraída tal qual ocorria na época da pelada e churrasco pré-samba de quarta-feira. O público exigia sucessos conhecidos nas rodas de samba. Eram filas de artistas atraídos pelo sucesso de público na quadra do Cacique de Ramos para a “canja” de três músicas, desde que registrada sua presença na rede social do bloco e do próprio artista.
A tensão e vigilância necessárias ao atendimento do grande público impedia aos então Diretores maior descontração. Todos tinham uma missão a cumprir e a temperatura era dada ao circular pela quadra, tendo contato com o público. Assim se evitavam quaisquer problemas antes de sua ocorrência.
O golpe mais duro veio com o falecimento do Renatinho Partideiro, a quem era dado o comando da roda de samba. Nesse Bira Presidente confiava de olhos fechados porque, a par do talento enorme, era Caciquede verdade. A roda de samba do Cacique de Ramos, a partir dessa ausência, perdeu seu compasso, apesar dos talentos que lá passaram.
Não há criação porque não há espaço para a convivência dos artistas. Tentamos mudar, adequar, adaptar. Mas isso não foi possível enquanto lá estive.
Em 2017, após o nascimento da minha primeira filha, gradativamente me afastei do Cacique para me dedicar a outro desafio tão desafiador quanto integrar o time de gestores do Cacique de Ramos: a paternidade da Alice. Agora a dedicação às questões profissionais e acadêmicas urgiam. Hobby não paga conta.
Alice em seu desfile de estreia no Cacique de Ramos (2018) – Acervo pessoal do autor
Quando o afastamento ocorreu, contudo, meu coração já não batia com o entusiasmo de outrora, pois sei que contribuí para o sucesso e o revés desse marco do samba e não tive capacidade de criar alternativas e mobilizar as pessoas em prol dessas mudanças ou de outras eventualmente propostas.
Hoje enxergo que não há o Partido Alto.
Não há o Cacique de Ramos em sua essência.
Mas há amor e compromisso de manter a luta para driblar o revés do sucesso!
Torço daqui e torço muito!
O samba e a cultura nacional certamente cerram fileiras nesse genuíno desejo por mais essa vitória desse bloco, que viverá por muito muito tempo. As raízes são fortes e foram nutridas. Basta regá-las!
Fabio, a esposa Sheila e a filha Alice (2018) – Acervo pessoal do autor
* Sobre o autor
Fabio Martins Affonso é advogado e foi membro da Diretoria do Cacique de Ramos entre 2010 e 2018.