Arlindo e Zeca, do Cacique

Walter Pereira

No carnaval de 2023, o desfile das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro será o palco para que as biografias de dois cariocas fundamentais do nosso tempo presente sejam contadas: as trajetórias dos amigos Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho são os enredos, respectivamente, do Império Serrano e da Acadêmicos do Grande Rio. Contemporâneos de inserção no samba, parceiros musicais, compadres, as histórias dos homenageados se interpenetram, sendo um personagem da vida do outro. Ambos nascidos no final da década de 50, na zona norte do Rio, possuem uma série de vivências culturais em comum nas suas formações: os quintais festeiros de famílias numerosas, com serestas e partido-alto; as brincadeiras nos blocos de sujo e de embalo; os contatos com o universo das escolas de samba; a religiosidade cruzada entre o catolicismo popular, a Umbanda e o Candomblé. No entanto, foi um personagem específico que os aproximou e selou a união deles: o pagode do Grêmio Recreativo Cacique de Ramos. Foi no terreno da Rua Uranos, 1326, Olaria (sim, o Cacique não está sediado em Ramos) que a parceria de vida dos sambistas deslanchou. Como não poderia deixar de ser, esse território pleno de significados é abordado nos enredos das duas escolas.

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Arlindo é imperiano e está em casa. O enredo Lugares de Arlindo tem autoria de Sandro Avelar, presidente da escola, sinopse de Alex Souza (carnavalesco) e Leonardo Lichote (pesquisador), com o roteiro do desfile desenvolvido pelo carnavalesco. Passeia pelos lugares físicos e simbólicos que propiciaram a personalidade de Arlindo:

Fica no samba de roda, na roda de amigos, num bloco de caciques brincando o carnaval. No fundo de quintal , onde o bom aprendiz recebeu a maior lição de malandragem: a de ser um artista popular[1]. Em 1961, o Cacique de Ramos foi oficialmente fundado. Nos anos 1970, na quadra do bloco, surgiu o chamado Pagode da Tamarineira, reunindo jovens cantores, compositores e instrumentistas. O termo “pagode” se popularizou. (…) Seu primeiro samba gravado foi “Lição de malandragem” (parceria sua com Rixxa), num LP de David Corrêa de 1981. Naquele mesmo ano, Arlindo foi convidado a participar do Fundo de Quintal com a saída de Jorge Aragão e Almir Guineto[2].

 No desfile imperiano, o Cacique de Ramos ocupará o Setor “Coração na Massa Você sabe quem sou eu Divina inspiração que vem do alto do Carnaval Guerreiro do asfalto Sou o Cacique de Ramos”, no qual serão abordados elementos como a tamarineira sagrada, os pagodes que inspiraram Arlindo (e nele se inspiram), bem como a empolgação da massa caciqueana na avenida. O samba-enredo é assinado por Sombrinha, Aluísio Machado, Carlos Senna, Carlitos Beto Br, Rubens Gordinho e Ambrósio Aurélio e menciona explicitamente “Levada de tantan, banjo e repique, poesia de um Cacique, malandragem deu lição”.

Zeca é portelense e está sendo homenageado pela tricolor de Duque de Caxias. Muito coerente se lembrarmos a relação do cantor com Xerém, distrito do município escolhido por ele há décadas como refúgio. Além disso, a decisão acertada da agremiação, nos últimos anos, em direcionar seus enredos para temas significativos, cujos maiores exemplos são os carnavais dedicados a Joãozinho da Gomeia (2020) e Exu (2022). O enredo Ô Zeca, o pagode onde é que é? Andei descalço, carroça e trem, procurando por Xerém, pra te ver, pra te abraçar, pra beber e batucar! tem autoria de Gabriel Haddad e Leonardo Bora, carnavalescos da escola, e Vinícius Natal, pesquisador, todos responsáveis também pela sinopse e o roteiro do desfile. Na imaginação dos criadores, um percurso, não cronológico ou retilíneo, no encalço do errante Jessé, cidadão das andanças, que está aqui, ali e em todos os lugares. Nesse circuito, uma parada na rua Uranos:

Então me veio a Madrinha, com a sua voz das andanças, e eu fui é pras bandas de Ramos, a Zona da Leopoldina, juntando na mesma mochila os retalhos do teu pagode: dos Boêmios, o “sobrenome”; do Cacique, a raiz e a casca. Tremia nas rodas,? A Tamarineira sagrada. Que viu tantas invenções que mudaram a nossa batida – o repique de Ubirany, o improviso, o banjo…Teu Compadre imperiano! [3] (..) No Cacique de Ramos, reuniões regadas a samba e batucada reuniram sambistas como Beth Carvalho, Jorge Aragão, Almir Guineto, Bira Presidente, Dona Ivone Lara, Arlindo Cruz, entre outros. Nesse meio também estava o tímido e franzino Zeca Pagodinho – e consideramos essa rede de relações composta por esses e outros atores como um movimento fundamental para a formação do samba e suas invenções modernas, não só no tocante à criação de novos instrumentos, como o repique de mão, criado por Ubirany, mas também como agentes e intelectuais capazes de articular saberes diversos e negociar com o mundo social de maneira bastante eficaz[4]

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O Setor 4 – “Raízes musicais”, está dedicado aos espaços musicais e recreativos que Zeca trilhou. O samba-enredo de Igor Leal, Arlindinho (filho de Arlindo Cruz), Diogo Nogueira, Myngal, Mingauzinho e Gusttavo Clarão aborda assim a roda de samba da agremiação: “Passei procurando na feira/ Em Del Castilho e na Tamarineira/E na gafieira, boêmios, malandros Pelos sete lados eu vou te cercando.”

Como notamos, se o Império Serrano passeia pelos lugares de Arlindo e a Grande Rio procura Zeca, é no Cacique de Ramos que elas se encontram.  O imperiano já tinha desfilado como folião no bloco, vestindo a napa de índio na infância e adolescência. Zeca era mais ligado ao Boêmios de Irajá, outro bloco de embalo, onde sua família tinha uma ala. Em falas a biógrafos e entrevistadores, ambos personagens já relataram que foi na quadra da agremiação, em algum ano do início da década de 1980, que eles efetivamente travaram contato e estreitaram laços. Segundo Arlindo, chegaram juntos ao Cacique. Desse tempo em diante, a relação dos amigos com o Cacique nunca chegou a ser institucional em sentido strito: não eram compositores “do bloco”, não pertenciam a uma ala de compositores da agremiação, nem atuaram em postos de direção ou organização. À medida que a carreira artística de ambos cresceu, os compromissos profissionais impediram que fossem assíduos aos pagodes caciqueanos, realizados ininterruptamente desde a metade da década de 1970, em dias, formatos e com grupos variados. Mas se entendermos a relação de ambos com a instituição em sentido lato, Zeca e Arlindo são grandes construtores do Cacique, uma vez que são atores principais de práticas que deram sentido à existência do local. Foram seus talentos de compositores e versadores, cultivados nos tão decantados pagodes embaixo da tamarineira nos anos 80, que serviram para cunhar o chão daquele lugar como um pólo privilegiado do que é reconhecido como um movimento social e cultural ao redor do samba do Rio de Janeiro. Ali floresceram novas musicalidades, instrumentações e repertórios, no melhor estilo de recriação da tradição.

Nesse sentido, os compadres da Cruz e Pagodinho são mesmo caciqueanos. É recorrente em suas falas que se afirmem como pertencentes ao Cacique de Ramos: “daqui que eu saí”, “sou de lá”, “ali que comecei”, “ali dei meus primeiros passos”. Na memória deles, retrabalhada ao longo das últimas quatro décadas, o Cacique é um espaço mítico, quase a “idade do ouro”. Zeca dedicou, em parceria com Bandeira Brasil, um lindo samba ao pagode caciqueano, “Tamarineira”, ode à árvore em cujos pés tudo desenrolava: “Lá onde nós madrugamos/ É o cacique de ramos/ Onde o samba foi morar/ Procuro sombra que é/ Pra do sol me abrigar/ Tamarineira me dá”. Já Arlindo explicitou o Cacique ao menos em dois sambas: com Franco e Sombrinha escreveu “Nova Morada”, onde a roda de samba do Cacique é abordada como herdeira da tradição musical dos encontros festeiros cariocas: “Lá quem é de samba entra na roda/ Quem não é da roda quer sambar/ E debaixo da tamarineira/ Musa, velha amiga e companheira/ São Sebastião nos abençoa /E o pagode gente boa/ Vai até o dia clarear”. Por sua vez, “Coração da Massa”, feita com Jorge Aragão, é um samba de carnaval ao estilo dos desfiles do bloco, vibrante, com palmas de mão e gritos guerreiros: “Você sabe quem sou eu/ Eu sou a apoteose do sambista/ Resumo de humildade e de conquista/ Sou o Cacique de Ramos”.

Depois que se tornaram, merecidamente, fenômenos da indústria musical brasileira, os compadres estiveram na quadra do Cacique sobretudo em ocasiões especiais. Digno de nota foi a gravação do programa Sarau, da GloboNews, conduzido por Chico Pinheiro, em 2011, por ocasião da celebração dos 50 anos da entidade, em que os amigos se reuniram, com outros bambas, para contar e cantar as vivências propiciadas pelo Cacique de Ramos. No mês de janeiro daquele mesmo ano, uma grande festa foi promovida pela agremiação em comemoração ao seu cinquentenário e à entrega da quadra nova que recebera reformada, recentemente, pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Arlindo e Zeca estiveram lá, “feito pinto no lixo”, versando, bebendo e se divertindo junto de tantos amigos, famosos e anônimos. Destacamos também a presença deles nas “Quartas Nobres”, série de eventos que o Grupo Fundo de Quintal realizou na quadra entre 2016 e 2017. Cada um pôde participar de uma edição dos shows, ocasião em que foram homenageados pela instituição. No início de 2017, Arlindo sofreu um acidente vascular cerebral que lhe impôs uma série de limitações. No final do ano, a quadra do Cacique de Ramos foi escolhida pela Rede Globo para a gravação de uma emocionante reportagem em que dezenas de sambistas das mais diversas gerações, e com diferentes graus de relação com Arlindo, homenagearam o querido amigo e parceiro.

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Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho são construtores e continuadores de uma certa identidade cultural do Rio de Janeiro que é muito cara a quem quer ver “o bem” dessa cidade e adjacências. Fica o desejo para que os desfiles do Império Serrano e da Grande Rio nos inspirem a continuar gostando e cuidando desse nosso “lugar”. E que a quadra da rua Uranos, 1326, Olaria, sede do nosso Cacique de Ramos, continue a ser espaço franco e democrático de encontros que selam amizades fundamentais para o fortalecimento da instituição.

Sobre o autor:  Walter Pereira é historiador e coordenador do Centro de Memória Domingos Félix do Nascimento do Grêmio Recreativo Cacique de Ramos.

[1] Sinopse p. 12 | [2] Justicativa do enredo pagina 14 |  [3] Sinopse p.77 | [4] Justificativa do enredo p.82