EU SOU CACIQUE

ALEXANDRE PALMA

A prioridade na arte depende de vários fatores: não há nada absoluto. Em muitos momentos, o prazer de desenhar uma charge ou a atuação na Escola de Belas Artes da UFRJ me trouxeram novas possibilidades. Depois o storyboard se tornou a ligação entre as artes visuais e o que realizei no cinema-documentário, mas há alguns anos voltei a me desafiar com a pintura. 

Embora a cor não esteja no título deste texto, a intenção aqui é uma singela homenagem ao bloco Cacique de Ramos, gesto que também remete à luta dos indígenas pela existência. A interculturalidade, assim, se situa na perspectiva de explicitar o Carnaval, seja quando a multidão explode na avenida ou em outro plano, quando a sociedade brasileira afirma a sua ancestralidade híbrida na interface afro-ameríndia. 

Pintura na Galeria Modernistas (2022). Acervo Alexandre Palma.

Para tal, concordamos com Luiz Antonio Simas em sua ponderação sobre a nova “profissão” surgida durante os últimos carnavais: o fiscal de fantasia. Nas palavras do exímio historiador; “as pessoas não estão entendendo: o Cacique tem 60 anos, é um negócio sério. Tem preceito religioso, são o sagrado e o profano convivendo ali. Teve o axé de candomblé plantado na tamarineira pelo pessoal da Mãe Menininha do Gantois. Eles não fazem nada que não seja autorizado. Além disso, tem o seguinte: a fantasias deles não é de índio brasileiro, é o índio apache dos filmes de Tom Mix (protagonista de faroeste americano nos anos 1920). Quando você pega um bloco de 60 anos, formado por pretos do subúrbio do Rio de Janeiro… não se pode falar em racismo nesse caso”*. 

O autor Alexandre Palma na Ala Carajás, desfile do Cacique de Ramos (2017). Acervo Alexandre Palma.

Este contraponto de Simas certamente é um desdobramento do gesto pioneiro do Cacique de Ramos neste debate; no ano de 2012, como mostra o instagram do Centro de Memória Domingos Félix do Nascimento, a quadra do Cacique recebeu diferentes lideranças indígenas em uma celebração magistral. Nosso desejo também é dialogar e por isso, aproximamos o meu lado folião e a minha trajetória nas artes visuais, especificamente em duas exposições de pintura recentes; a primeira na Galeria Modernistas em Santa Teresa (2022) e a segunda, no Espaço Cultural do Colégio Pedro II neste ano de 2023. Partimos de uma centelha inicial, o primeiro encontro de minha família com o Cacique de Ramos da década de 1960 até conhecermos nos idos de 2011, Pedro Índio, um grande Mestre da cultura popular pernambucana. Ao lado destes atravessamentos, ainda temos uma atmosfera polarizada nos dias de hoje: as luzes dos fogos de artifício encantam o desfile do Cacique enquanto as chamas na floresta assombram os povos originários. No limite entre representar a alegre experiência oferecida anualmente pela agremiação da zona norte sem deixar de lado uma urgente reflexão sobre o momento atual, o ponto de partida é a pintura figurativa contemporânea. 

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*https://noticias.uol.com.br/colunas/chico-alves/2020/02/17/fantasias-na-mira-do-politicamente-correto-luiz-antonio-simas-opina.htm

Membros da Ala Guerreiros do Cacique de Ramos na exposição “Eu sou Cacique” na Galeria Modernistas,
Rio de Janeiro (2022). Acervo Alexandre Palma.

Nestas exposições, ambas intituladas “Eu sou Cacique”, buscamos uma maneira mais espontânea de explorar o uso do vermelho, do branco e do preto, a paleta do Cacique de Ramos. O mais importante é o tributo aos sessenta anos do bloco sem desconsiderar esse ambiente candente como multiplicador, em outro plano, de inquestionáveis tensões no presente. O desafio da cor está em todas as composições: enquanto artista relembro trajetórias familiares na zona norte, revisito passagens como folião-observador na Avenida Rio Branco e seleciono imagens de quando saí como componente na Ala Carajás ou na Ala Guerreiros do Cacique. Nestas pinturas, procuro transpor a agremiação barroca para o diálogo cor-som, sublinhando a gestualidade no uso das tintas e bandeiras. Esta pesquisa artística inclui fragmentos sobre a cultura afro-brasileira e a questão indígena, dois dilemas modernistas que se reconfiguram em novas tendências na arte contemporânea.

Exposição “Eu sou Cacique”, Espaço Cultural do Colégio Pedro II, Rio de Janeiro (2023). Acervo Alexandre Palma.

Exposição “Eu sou Cacique”, Espaço Cultural do Colégio Pedro II, Rio de Janeiro (2023). Acervo Alexandre Palma.

Assim apostamos na figuração livre e completamos a série de pinturas idealizadas na pandemia com bandeiras inspiradas em marcantes referências das cosmovisões indígenas: Sonia Guajajara, Naara Tikuna, Tuíre Kayapó, Valdelice Veron, Davi Kopenawa, Xicão Xukuru, Urutau Guajajara e Jaider Esbell. As fronteiras entre indígenas e afrodescendentes se dissipam no inevitável caminho progressista e é possível vislumbrar algo já sinalizado em 2019 neste trecho do samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira: “mulheres tamoios mulatos eu quero um Brasil que não está no retrato”.  

O autor Alexandre Palma com o ambientalista  André Amador na exposição “Eu sou Cacique”,
Espaço Cultural do Colégio Pedro II, Rio de Janeiro (2023). Acervo Alexandre Palma.

Espero que as minhas pinturas possam se misturar aos diferentes brincantes do Carnaval, além daqueles apaixonados pelo Cacique de Ramos. Nestes trabalhos recentes, a forma se articula no espaço urbano, ao espetáculo de fogos na saída do Cacique, aos anônimos, aos artistas, e, finalmente, ao padroeiro da cidade na quadra da Rua Uranos. Saúdo o nosso protetor na folia e em todos os dias do ano, entoado pelo Mestre Messias (1942 – 2011): “São Sebastião… todos são… Sebastião… virou referência de janeiro… na beira do Rio Carioca…é santo de vida no terreiro… na dança dos bantos brasileiros”.

O autor Alexandre Palma com Bira Presidente na quadra do Cacique de Ramos (2022). Acervo Alexandre Palma

Alexandre Palma desfila no Cacique de Ramos desde 2017, é artista visual e professor na UFRJ.