William Mathias
Quando eu era criança, eram comuns nas festas de família as rodas de samba e a animação próprias da vida suburbana: a gente junta os vizinhos e toda a infinidade de familiares para um grande churrasco. Essas festas aconteciam em Brás de Pina, na casa da minha já falecida vó. Era tudo muito animado, e a oportunidade de ver meus dez tios e tias reunidos, vários primos que eu nem sabia quem eram, tudo com muita comida e bebida. Na época, eu não entendia. Não gostava e sempre me sentia coagido a ir nessas festas, quando queria ficar na minha lendo gibi ou jogando videogame.
Não entendia porque todos comemoravam tanto o tempo todo se tínhamos uma vida sofrida, de muita luta e trabalho. Sequer admitia que gostava de alguns sambas que tocavam, ou até mesmo, das músicas “charme” -o R&B americano- que entrecortavam os pagodes. Comparando as músicas e as formas de existir que outras famílias e amigos tinham, eu me sentia de alguma forma constrangido, ainda que boa parte fosse por causa de certa timidez e introspecção infantil ou adolescente. Colonizado, me identificava com os rocks radiofônicos e o pop adolescente que passava entre os desenhos que assistia na TV a cabo. Fui entender isso muitos anos depois a partir de um processo de autoconhecimento e reconhecimento como um homem negro. Curiosamente esse processo se deu por entender que muito do que curtia como música veio do Funk dos anos 70, graças a minha imersão no Hip Hop e os samples que eles usavam.
Um ponto de insight foi quando estava no centro do Rio, na praça Tiradentes, junto a amigos numa roda de samba… digamos… gentrificada. Decidimos ir embora, mas ao passar pela Avenida Gomes Freire, entramos no Bar Vaca Atolada e daí levei uma pedrada: Margarete Mendes estava cantando na roda de samba. Ali começou meu processo de entendimento. Foi algo completamente diferente: a energia que senti foi avassaladora. Comecei a entender porque, procurei lembrar de quando senti isso da última vez e logo vieram as lembranças das giras de Umbanda, quando ia ao terreiro com a minha mãe, pois a potência era a mesma. Margarete estava com uma blusa do Cacique de Ramos.
A cantora Margarete Mendes se apresentando na roda de samba do bar Vaca Atolada – Registro e acervo de Marco Ribeiro
Nem sempre as músicas que tocavam naquela roda eram felizes, quer dizer, eram animadas, mas as letras muitas vezes tristes. Então, lembrei de novo dos meus questionamentos quando criança lá na casa dos meus avós. Talvez haja mesmo uma aparente contradição entre as letras melancólicas e a linguagem eufórica do ritmo. Isso também pode ser fruto de uma realidade de nossos antepassados, marcada por resistência e sofrimento. De qualquer forma, essa experiência que foi, sobretudo, estética e simbólica, me trouxe muitas reflexões de ordem tanto racionais quanto sentimentais.
Tempos depois, resolvi fazer uma reparação histórica comigo mesmo e fui, pela primeira vez – apesar de morar na Penha e por isso bem perto – ao Cacique de Ramos. Essa vontade já existia a partir das conversas sempre maravilhosas com o amigo Walter Pereira, e quando tive a felicidade de comemorar o ingresso no serviço público, achei que era o momento. Chegando lá na tradicional feijoada outro insight: poucas vezes estive em um local onde houvesse tantos como eu, quero dizer, pessoas negras como eu. Esse sentimento veio a se repetir depois no Baile Charme de Madureira. Tirando meus momentos familiares e no terreiro, poucas vezes estive em locais nos quais me sentia assim tão acolhido e, principalmente, à vontade.
Na quadra do Cacique de Ramos com amigos (2022) – Acervo pessoal do autor
Fui buscar entender e essa sensação é mais simplesmente a representatividade cunhada muitas vezes de maneira liberal. No mundo grego a ideia de que Muniz Sodré usa envolve mais a questão de uma substância que dá origem a toda a existência, mas aqui emprega o conceito de arkhé para descrever culturas que, à semelhança da cultura negra, têm suas bases na experiência e no reconhecimento da ancestralidade. Nesse sentido, para o autor, a cultura negra cultua a noção de origem não como um simplesmente início de algo, e sim como o “eterno impulso inaugural da força de continuidade do grupo. A arkhé está no passado e no futuro, é tanto origem como destino” (1988, p. 153). Nas palavras do já saudoso Nego Bispo “nós temos começo, meio e começo de novo” (2023).
A essência dessa arkhé é a convivência de diversas temporalidades ao mesmo tempo sem a pressa de uma modernidade dentro de uma indústria cultural ávida por “novidades”. Dentro dessa ideia, a conexão que se pode estabelecer continuamente com nossos ancestrais acontece por meio de uma constante rememoração nas práticas ritualísticas e míticas. O terreiro expressa muito bem isso por ser um espaço de culto que contém muitos símbolos de origem mítica. Mas é preciso entendê-lo também como uma metáfora para outros espaços de resistência: o terreiro é um espaço de memória de nossos antepassados, expresso até mesmo nas ritualísticas sucessórias, as pessoas envolvidas e por isso é também um quilombo. O nosso axé é o sentimento que nos toca quando lembramos e entendemos a luta dos nossos ancestrais, sobretudo, quando reconhecemos a sua importância e mantemos espaços como o Cacique de Ramos.
Baile da equipe Black Power, em foto originalmente publicada no “Jornal do Brasil” e reproduzida no livro “1976 — Movimento Black Rio”. Foto: Divulgação / Editora José Olympio
É preciso pensar o quilombo para além de uma ideia do passado. Na verdade é um espaço de agregação que se reconfigurou no passado na história afro-brasileira: já foram os Bailes Black, são os Bailes Funk e sempre será o Carnaval. Esse processo, como assinala Beatriz Nascimento (1989), se constituiu nos assentamentos das comunidades negras e estão – como sabemos ao observar nossa cidade – fortemente relacionados aos territórios. Se nós somos um povo fruto de uma diáspora em que nos é negado o passado, nós os inventamos e o reconstituímos através desses espaços. Entretanto, talvez possamos pensar esse processo como o de “aquilombamento”, no sentido de que não somente os espaços físicos e também a performance de nossas experiências culturais como estratégia de resistência, intervenção e potencialização organizadas pela população negra.
Baile Charme no Viaduto de Madureira (2021) – Fotografia Renata Leal/Veja Rio
Renato Noguera diz que “a existência humana é um fenômeno narrativo. Em outras palavras, viver é uma contação de histórias, uma maneira de ocupar o espaço e experimentar o tempo” (2019, p. 272). Através dessa reverência à ancestralidade rememoramos quem nós somos. Isso acontece desde os samples usados pelos rappers até a valorização da velha guarda de uma escola de samba: estamos reconhecendo aqueles que nos inspiram e nos deram condições de estarmos aqui. Se é difícil traçar uma árvore genealógica individual, que todos os nossos grandes representantes sejam nossos ancestrais.
Por isso a ideia de tradição é importante para nós, respeitar nossos bambas, nossos mais velhos, uma vez que a comunicação da matriz simbólica do grupo é importante não de forma estática, e sim como forma de permanência dentro da roda do tempo e das transformações dos lugares. Senti isso quando resenhei a experiência de assistir o filme documentário “Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho” em pleno Cacique de Ramos. Essa experiência não me soou como uma mera homenagem, era como se ela estivesse ali, na verdade ela nunca deixou de estar e todos a podiam sentir. Realmente a sentimos na roda de samba que se seguiu debaixo da tamarineira.
Roda de samba após a estreia do documentário “Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho” na quadra do Cacique de Ramos (18/01/2023) – Acervo pessoal do autor
Podemos aproximar essas considerações daquilo que Abdias do Nascimento (2002) entende sobre a cultura ser um “entrelaçamento inseparável de aspectos que somados constituem a totalidade histórico-existencial e metafísica” (NASCIMENTO, 2002, p. 202) e que “[…] a cultura afro-brasileira, […] sempre esteve comprometida com a libertação do povo negro” (Ibid, 2002, p. 202). No sentido de necessitarmos continuamente dar condições de que a nossa comunidade possa construir o que ele chama de “terrível consciência histórica da esperança” (Ibid, 2002, p. 204). Esse aspecto passa por restaurar a memória, a história, a cultura e a ancestralidade do povo, o que significa restaurar no imaginário também sua cultura como forma de transformação subjetiva e social (Ibid, 2002, p. 327).
Sejam os Orixás ou o uso encantado da oralidade e dos territórios emergidos no meio das adversidades, nossa cultura serve como potência para uma comunidade como um todo. Por isso se diz que nossos mais velhos, nossos griots, possuem um axé vindo da sabedoria adquirida pela vivência. E ainda que haja momentos de negociação com aquilo que é hegemônico e isso crie ruídos, é uma cultura baseada na circularidade e não na dominação que consegue persistir frente ao sistema técnico-capitalista, sendo ainda uma expressão dos nossos morros e subúrbios cultivado como uma linguagem viva (COUTINHO, 2014, p. 67).
No final, todo esse texto poderia ser reduzido à sensação que senti nos insights ditos anteriormente. Quer dizer, toda essa racionalização feita a partir deles, e trazendo leituras de autores como o Sodré, é uma tentativa de dar conta do que meu corpo sentiu. Um aspecto interessante, uma vez que nas culturas de arkhé que o autor diz, o corpo sempre ganha centralidade. É por isso que a gente samba e canta junto, é por isso que no baile em Madureira todos dançam juntos. Esse sentimento coletivo nos envolve daquilo que Sodré chama de “lareralidade” do negro, a flexibilização das proibições e padrões impostos aos corpos e, de novo, vemos o elo entre os desdobramentos musicais de matriz africana, do samba ao jazz.
Daí vem aquele estranhamento inicial das letras às vezes tristes em ritmos alegres, uma vez que é no fim uma luta contra as históricas imposições e controles, uma forma intuitiva que não requer “nenhuma racionalização, apenas a capacidade de sentir (…). Não se trata de qualquer ‘sentir’, mas de uma experiência radical, de uma comunicação original com o mundo” (SODRÉ, 1988, p. 148). Talvez seja isso que eu senti naquela primeira vez, talvez não. Apenas sei que me senti pleno e toda vez que piso no Cacique de Ramos tenho a mesma sensação quase espiritual de pertencimento: me sinto na casa dos meus avós e lá eu de algum jeito me comunico com eles e com ancestrais ainda mais antigos.
Referências Bibliográficas:
ANDRADE, S. Começo, meio e começo – Entrevista – Revestrés. Disponível em: https://revistarevestres.com.br/entrevista/comeco-meio-e-comeco/. Acesso em: 17 dez. 2023.
COUTINHO, E.G. Muniz Sodré: Alegria, Hegemonia e Arkhé. In: A comunicação do oprimido e outros ensaios. Rio de Janeiro: Mórula, 2014.
MOREIRA, William Mathias. Uma noite de reencontro com Beth Carvalho no Cacique de Ramos através de suas andanças. Disponível em: https://disconversa.com/materias/uma-noite-de-reencontro-com-beth-carvalho-no-cacique-de-ramos-atraves-de-suas-andancas/. Acesso em: 17 dez. 2023.
NASCIMENTO, Abdias do. O quilombismo. 2ª ed. Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Palmares/OR Editor Produtor, 2002.
NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In: RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. SP: Instituto Kuanza, 2006.
NOGUERA, Renato. “Antes de saber para onde vai, é preciso saber quem você é”: tecnologia griot, filosofia e educação. Problemata: R. Intern. Fil. V. 10. n. 2. 2019.
SODRÉ, Muniz: O Terreiro e a Cidade. Petrópolis-RJ, Ed.Vozes Ltda, 1988.
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Sobre o autor
William Mathias (@willxx023) é doutorando em Educação pela UERJ, mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio, Historiador, Arquivista e Pedagogo. É professor de História da educação básica do município do Rio de Janeiro e pesquisador nos grupos de pesquisa “Ser em vibração: estética, psicanálise, linguagem e educação” na UERJ e Laboratório de Ensino de História e Patrimônio Cultural (LEEHPAC) da PUC-Rio.