Pra levar toda minha tristeza

Desirree Reis

Meu chapinha, confesso (confessamos) que fácil não é. 

Mas se reviver memórias, sorrisos e legados nos permitem dar outros sentidos à dor da perda, não seria com Ubirany Félix do Nascimento algo diferente. Não mesmo. Para começar, tento revisitar sentimentos despertados quando, pela primeira vez, avistei a elegância de um dos mestres mais respeitados no mundo do samba.

Talvez por ser de uma família sambista, o ato de rememorar chega atravessado pelas lembranças de minha própria trajetória. E, assim, logo salta a imagem do chapinha e seu singular sapateado. Aquele parecido com as danças que, desde a infância, via meu tio Chico Reis performar nas festas, no quintal, em roda e em Mangueira. Lembrar de Ubirany e de Francisco é, assim, sentir um quase instintivo sorriso com suspiro de gratidão, de pertencimento, de conquistas – individuais e coletivas. É convencer-se que passos e sonhos, realmente, vêm de longe.

Recorte da capa do LP “Samba é no Fundo de Quintal” (1981)
Acervo Centro de Memória Domingos Félix do Nascimento do G.R.Cacique de Ramos.

Mas lembro também – e é a partir dessa experiência que recorto meu texto/homenagem/memórias de afeto – do depoimento de Ubirany para o Museu do Samba, no âmbito do núcleo de história oral. Este, por sua vez, criado no bojo da patrimonialização e salvaguarda das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro.

Naqueles idos de 2015, eu já era historiadora. E fiz, ao lado de Rachel Valença, Álea Almeida e Vanessa Alves, tanto a pesquisa como a entrevista com o sambista no museu. Gravação esperada por mim, pela equipe toda.

Cheguei até a chamar meu irmão para assistir, porque o sentimento era único: queria estar com minha família. O momento era mais único ainda: o herdeiro de Dona Conceição e Sr. Domingos contava sua história de vida, minuciosamente, durante quase duas horas no sopé do Morro da Mangueira.

Ubirany no dia da gravação do depoimento. Entrevistadoras Rachel Valença e Desirree Reis (2015)
Acervo pessoal da autora.

Era, portanto, a oportunidade de ver o bamba pela sua mirada retrospectiva, partindo dos anos 1940 e 1950, no dia a dia de uma casa repleta de fundamentos, resistências e alegrias. Lar de Ramos, de festas, de religiosidades, de carnaval, de nomes com origens indígenas (Ubirajara “Bira Presidente”, Ubiracy, Ubirany…), de samba. Aliás, de nata do samba.  Lá, passavam Donga, João da Baiana, Gastão Viana, Bide e Marçal – só para citar alguns amigos do convívio de seu pai. 

Ubirany bem lembrava disso:

Meu pai e minha mãe eram muitos festeiros. As festas lá em casa chegavam a durar dois, três dias. (...) Ao mesmo tempo que rolava um cantinho em que se tocava choro ou samba, também [acontecia] de o pessoal dançar juntinho na sala ao som do conjunto regional (...). Nós curtimos muito isso – feito por estes amigos do meu pai. (Ubirany, 2015)

E completou:

[Além disso, também] começamos a viver muito o carnaval através do meu pai, porque ele fazia parte de um grupo que eram chamados não de diretores, mas de lordes. Lordes eram as pessoas que dirigiam o bloco carnavalesco existente naquela época chamado “Boi da coroa”.  Um bloco que arregimentava milhares de pessoas [da região] da Leopoldina. Nesse bloco, ficava à frente um boi simulado, que fazia aqueles trejeitos com uma pessoa embaixo. E, atrás dele, um sem-número de pessoas. (Ubirany, 2015)

Dessas misturas (e tantas outras), sairiam fundadores do Grêmio Recreativo Cacique de Ramos, que nos anos 1960, década de efervescência pelas artes nacionais[1], escreviam importantes páginas de afirmação de identidades e de múltiplos caminhos por liberdades na História do Samba, na História do Brasil.

Entre acordes harmônicos e dissonantes, formava-se o bloco de famílias do samba e do carnaval do subúrbio carioca, que, mais tarde, ganharia o centro da cidade, o país e o mundo todo.

Sr. Domingos também lá esteve presente. “Serralheiro, ajudava a restaurar as peças” danificadas pós-desfiles, recordou o filho cheio de orgulho. Admiração proporcionalmente estendida à Mãe Conceição, responsável por plantar o Axé da Tamarineira, matriarca da família, liderança religiosa e filha de santo de Mãe Menininha do Gantois, no Candomblé.

[1] Cena cultural estudada por pesquisadores como Carlos Alberto Messeder Pereira, Marcelo Ridenti e Marcos Napolitano.

Ubirany e seu repique de mão no dia da gravação do depoimento (2015)
Acervo pessoal da autora.

No depoimento[2], entrecruzam-se lembranças e legados: as partidas de futebol e os pagodes de quarta-feira; a definição do nome Cacique de Ramos; a revolução das fantasias de napa; as disputas Cacique x Bafo da Onça; o 20 de janeiro[3]; a conquista da sede fixa na rua Uranos; o surgimento do grupo Fundo de Quintal; o celeiro de bambas. Chiquita, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Sereno, Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Luiz Carlos da Vila, Agildo Mendes… Sambas de quadra, sambas de partido-alto, sambas de embalo. “Água na boca”, “Vou festejar”. E “Sou Cacique, sou Mangueira”. Aqui, já era parte do samba de enredo da madrinha verde-e-rosa, homenageando o terreiro caciqueano, pela Sapucaí no carnaval de 2012.

Decerto, o lord maior do samba fez também recordar memórias de desfiles da verde-e-branco leopoldinense. Dentre elas, Ubirany esteve na comissão de frente da Imperatriz, conquistando nota 10, junto a mais integrantes do Cacique de Ramos.

[2] O depoimento na íntegra pode ser consultado no acervo do Museu do Samba. Para mais informações: https://www.museudosamba.org.br/

[3] Data de fundação do Cacique de Ramos, de nascimento do Sr. Domingos Félix do Nascimento, de celebração de São Sebastião (no Catolicismo) e de Oxóssi (na Umbanda).

Ubirany no dia da gravação do depoimento (2015)
Acervo pessoal da autora.

E foi justamente nos ares do subúrbio da Leopoldina que se viu fazendo letras de samba.

“Sou compositor de de vez em quando

Falava Ubirany, enquanto rememorava composições com parceiros como Mauro Diniz e Arlindo Cruz. Mas também gravações como “O Morro Acordou”, parceria com Dida, no LP de Jair Rodrigues, no alvorecer dos anos 1970.

E antes disso? E o primeiro samba?

Ah sim, sim! Ih, rapaz… foi a primeira música. Era eu e Matias, compositor da Imperatriz. (…) Foi lá no “Ferro de engomar”, um bar [próximo] à linha do trem, um botequim que ficava de quina, bem na travessia de Ramos. Eu falava para ele [Matias]: “Olha, um dia ainda vou compor”, e ele, “vamos fazer juntos”. Da vontade de fazer samba, eu escrevi uma história – me lembro bem – num papel de pacote de cigarro, (…) [dizendo] “quero compor um samba, mas não tenho inspiração, porque sou um principiante neste tipo de vocação”. Eu sei que ele botou a melodia.

Talvez eu lembre… [pausa curta]

(Ubirany, 2015)

Não só lembrou, como cantarolou e registrou.

Entremeando melodia, brilho nos olhos, sorrisos e nostalgias, ele dava uma palinha do seu samba – cujo um verso inspira o título deste texto.

Quero compor um samba,

Mas não sinto inspiração,

porque sou principiante neste tipo de vocação.

Em minha modéstia, vou tentar escrever

Um samba ritmado, para meus males esquecer.

 

Quero falar em amor, porém não encontro motivo.

Penso na natureza, que sempre foi meu lenitivo.

Mas prefiro a boemia, somente porque ...

Leva toda minha tristeza

E me traz alegria, aventura e prazer.

(Trecho musical transcrito – samba “Inspiração”, de Ubirany e Matias. Ubirany, 2015[4])

YouTube player

DVD Fundo de Quintal Ao Vivo (2004) – Indie Records

Na série de depoimentos do museu, é comum entrevistados deixarem objetos para compor coleções do acervo.

Fotografias, indumentárias, manuscritos exemplificam alguns destes itens, que contam biografias e ajudam a preservar o modo de vida do samba carioca. Ubirany entregou um repique de mão. Seu mais conhecido invento, que, ao ser exibido nos espaços expositivos, provocava fitadas e selfies de públicos vindos dos vários rincões do país e do exterior.

Aos olhos da equipe do educativo, tal instrumento musical (e sua levada própria) era a deixa certa para ilustrar o poder de criação do povo do samba. Estratégia planejada e orquestrada, especialmente quando se tratava de um grupo escolar. Porque nós já sabíamos – e as crianças sentiam – que Ubirany tornou-se personagem para figurar nos livros didáticos de todo o Brasil e fazer toda pessoa negra lembrar de ter orgulho de si.

[4] O samba “Inspiração”, de Ubirany e Matias, foi gravado no LP “O Cacique de Ramos” (RCA Victor), de 1964. No acervo do Centro de Memória do Cacique de Ramos, consta um exemplar do mesmo. Para ouvir a canção, acesse: https://spotify.link/9K1Q3z93WDb.

 

Repique de mão de Ubirany em exposição no Museu do Samba (2015). Fotógrafo Junior
Acervo Museu do Samba

Um fato, por sinal, é inquestionável: grandes como ele suplantam tristezas.

Se a saudade é imensa, maior ainda é a honra de poder celebrá-lo em nossa ancestralidade.

Entre palcos e quadras, o mestre de fala mansa e certeira (como um bom caboclo!) faz-se ainda sentir em toques de repiques, de repiniques, de tantãs, em gingados, poesias e versejos. Faz-se embalar em cada pagode, em cada batuque, pela avenida inteira. Faz-se eternizar em quaisquer gritos de sambistas por direitos, por justiça. Especialmente daqueles que, sábios como o nosso chapinha, vêm serpeando lutas, pintando territórios e tecendo futuros plurais no garbo, na serenidade – e bem no miudinho.

Gravação do programa “Samba para sempre” do Canal BIS  (2015)
Fotografia de Michelle Beff.

Fonte: Depoimento de Ubirany Felix do Nascimento concedido ao Programa de história oral “Memória das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro”, no Museu do Samba. Rio de Janeiro, 11 de novembro de 2015.

Sobre a autora

Sambista e historiadora. Com formação pela Ufrj, é mestra em História (Puc-Rio) e doutoranda em Museologia e Patrimônio (Unirio). Atua na coordenação de conteúdo do projeto Territórios Negros (Instituto 215|Negram/UFRJ) e é pesquisadora do Nugep/Unirio. Foi Gerente Técnica do Museu do Samba, consultora Unesco no processo de concepção do Museu de Território (Cais do Valongo), integrou equipe técnica do projeto de reabertura do Museu do Carnaval e participou da elaboração do plano museológico do Museu da História e da Cultura Afro-brasileira (MUHCAB), na Pequena África. Pesquisadora nos Musicais “Cartola: O mundo é um moinho” e “Dona Ivone Lara: Um sorriso Negro”. Integra a Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros.