Te gosto (jeito criança) e sobre como semeamos novos guardiões da poesia

Marco Aurélio Correa

Este ano eu não vou marcar bobeira, vou caciquear. Quero nem saber, esse carnaval vou meter meu pé na encolha e partir para o desfile do meu Cacique. Tem nem como e não é segredo. Quer dizer, é segredo para senhora dona minha mãe. Tia Jorgina, como a velha conhecida por todos bambas, é completamente contra a minha presença nos desfiles do carnaval. Dona minha mãe e toda a velha guarda agora entraram numa de que lugar de criança não é mais no carnaval do centro da cidade. Na verdade, para os mais velhos, lugar de criança é lugar nenhum. Nem o carnaval aqui dos acessos tenho conseguido curtir, ainda mais depois daquela treta entre os bate bolas lá pela Bariri.

Caraca, negócio está tão sério que até esqueci de me apresentar, meu nome é Uiratupi, dona minha mãe me deu esse nome porque referência muito os caboclos e porque eu sou feito passarinho, falo que nem uma matraca. Mas pode me chamar de Uirá mesmo, é mais fácil e geral pelos acessos me conhece assim.

Para quem cresceu debaixo da tamarineira sabe que o carnaval é um momento mágico. A quadra é o doce refúgio de todo caciqueano, lá é o endereço onde desde pequenos aprendemos os mandamentos do samba, descobrimos os encantamentos do tantã e saboreamos os alimentos da feijoada. Cresci com dona minha mãe me embalando de cafuné colo com os versos:

— Quando estas junto a mim só sei que te gosto criança. Essa vida é uma dança do princípio ao fim.

E como tudo que é bom no Cacique tudo termina em pagode. Mãe, pai, tia, vó e vô, mais velho, caçula e se até bobear cachorro se degustam em tudo que nosso samba tem a oferecer. Em nosso fundo de quintal qualquer criança toca um pandeiro, um surdo e um cavaquinho, acompanha o canto de um passarinho sem errar o compasso. Se não acredita no papo posso te provar.

— Lindinho, puxa aquele dó maior aí, vou acompanhar aqui no pandeiro!

— Coé cara, foca em contar a história aí, depois nós toca. Tu gosta muito de se amostrar mesmo. Nada a ver Uirá. — Pode crer, papo reto. Pro Lindinho feio é apelido, mas tudo que faltou em beleza nele veio de dobro em sagacidade. E o menor não é firmeza só nas quatro cordas, o moleque é cabeça demais.

Então, voltando o papo, sei que é a nossa tamarineira que guarda todas as poesias do caciquear, mas é na folia do carnaval que está o verdadeiro encanto do Cacique. A parada é que o bloco do Cacique sempre foi família, e geral sabe que não tem família sem criança. Nós somos a alma do bagulho. O vacilo é que de uns anos pra cá os coroas tão muito bolado, tem história de tudo correndo ai: que a polícia tá pegando qualquer um de bobeira, que os bandidos estão tão duros que inventaram agora de roubar até criança, que tem gringo drogando guaraná e sequestrando menor para pegar os órgãos. Doideira, os coroa tão acreditando em tudo que veem na internet e ainda falam que nós estamos muito tempo com a cara enfiada no celular.

— Vocês acham que o mundo nasceu ontem. Eu não te carreguei nove meses e sustento esse teu bucho até hoje pra se meter em furada em bloco nenhum não.

Já escutei essa dela tantas vezes que até tiro de cor só do pé do ouvido da memória. Pior que parece que a velha guarda faz de sacanagem, nós crescemos ouvindo eles contarem e cantarem histórias de quando eram pequenos no carnaval, mas quando chega a nossa vez não podemos brincar. Eles falavam que antigamente era a coisa mais linda, geral trajado e na beca, todo mundo brincante de carnaval, parecia até que as alas incorporavam os indígenas que tanto saúdam. Sinto uma saudade abraçar meu coração, vinda de um tempo longe que ainda não passou na avenida da minha vida. Mas vai passar, mas aí se vai.

— Chega de resenha aí Uirá. O povo de casa já entendeu o proceder, agora é a hora do povo de rua. Não tem cochilo. Bora meter o pé, se não os coroas vão se ligar.

— Correto. Bora puxar, é no ao vivo que a gente aprende as coisas mesmo. Isso qualquer um que frequenta um pagode sabe.

O esquema é o seguinte: todo mundo já ganhou pro desfile. Olaria tá capenga, vazia, geral tá na pista. Só ficou as crianças, a velha guarda já deve estar dormindo, e as tia crente, que deviam estar cuidando da gente, tão mastigando alguma coisa por aí, pra variar. Vamos dar um calote no trem, descer na central e cair na Chile.

— Bora mermo. — Reforçou o cria Lindinho, acertando o seu chapéu de malandro na careca, daquele jeitinho dele.

E fomos. Pulamos a estação na tranquilidade. Os guardinha nem nada. Carnaval ninguém devia ser obrigado a trabalhar não. É tudo no ritmo de festa. O trem já estava como, galera embrasando, gente vendendo muamba, candango amassando os lanche e quitute, tudo colorido de fantasia, naqueles pique. Clima propício. Puxei aquela levada no pandeiro, Lindinho já se ligou e nos primeiros acordes o trem já era toda atenção nossa.

— Sim é o Cacique de Ramos, planta onde em todos os ramos cantam passarinhos nas manhãs… — Com a minha voz nos trinques não tinha nem como, passamos o chapéu e já descolamos a passagem de volta e se bobear dava pra pegar um guaraná nos camelôs.

De bolso cheio fomos partindo para onde ia rolar o desfile. Bagulho tava de verdade mesmo, agora entendo a energia que os mais velhos falam. Todo mundo com sorriso estampado no rosto, cachaça cantando e alegria radiando feito sol como se não fosse noite. Andando não via nada demais pra deixar preocupado, nenhum assalto, nenhum órgão furtado. Mó paz.

Quando chegamos no Cacique mesmo, metemos aquela de cantinho. Na beirola. Não dava pra dar o mole e ir no meio da parada e ser pego pelos coroas. Pegamos uns adereços, meti uma tintura tamoio e fomos curtindo o som no disfarce. A bateria tava coisa séria. Cada pancadão nos surdos e tantãs trovoam meu coração, os repique e chocalho me arrepiam todo.


Crianças preparadas para desfilar (1979) – Acervo do Centro de Memória do Cacique de Ramos

Tava tudo paz até que do nada vejo uma muvuca estranha. Deu ruim. Tremo a base num ritmo erradão. Não sei se era medo dos gringos me levarem ou da dona minha mãe me pegar na porrada. Os dois cenários não eram nada favoráveis. Quando vejo um grupo de bate bolas passa correndo em frente ao cordão do bloco. Estavam correndo lá da Cinelândia, praça onde o caô deles acontece, só que dessa vez quem deu a carreira neles foi a polícia. Por algum motivo aquele bando de bunda mole botaram os Clóvis pra correr. Entendi foi é nada. E ainda dizem que bate bola é brabão, nada a ver, os caras são mó humilde, se anda de peça é uma carabina velha, enquanto os PM vêm na judaria de fuzil até.

O bloco fingiu costume e continuou a tocar, mas até os melhores ogãs tavam errando compasso com a situação. Um dos Clóvis despreparado ficou para trás do grupo e veio na lateral do bloco procurando apoio, quando ele viu geral de pena, tinta e cocar viu que não ia passar batido mesmo com aquela palhaçaria toda de bate bola. Percebendo o ruim ele deu uma girada para fugir dos homens, mas nisso perdeu o pisante e começou correr mancando. Para tu ver o desespero do cara ele deixou até o tênis para trás. Para quem não sabe, conta a fofoca que esses Clóvis gasta uns dois meses de salário nessas ostentações de tênis e mesmo assim faz questão de botar fogo no pisante no final do carnaval. É coisa de maluco.

O cana já armava o cacetete para derrubar o amigo. Geral da bagunça se encolhia antecipando a dor da pancada.

— Só eu que tô bolando vendo isso? — Penso ou falo. Já não sei.

Meu corpo dá uns troços vendo em câmera lenta o cacetete pegar abrir a cabeça do irmão. Eu não posso deixar aquela judiação à toa. Do nada giro o pandeiro e jogo bem na perna do polícia. Tipo caçador de uma flecha só, coisa de quem é da curimba entende. O capanga do estado voa de cara no chão. O clima pesa e geral faz silêncio. O tempo se suspende e até incansável bateria do Cacique dá um descanso. O cara levanta com o nariz sangrando, dá um muxoxo bolado e nem sinal do bate bola.

Geral quer rir, mas ninguém tem coragem.

Lindinho já ia me zoando, mas o homem vem fulo na minha direção. Casa caiu pro meu lado, vou de cana, juizado dos menores e os caramba. Antes que o maluco roncasse pra mim do nada Tia Jorgina, dona minha mãe, e mais umas dez negona se bota na minha frente. O silêncio pesa ainda mais o ar. O PM, vendo que não tinha motivo e já tava humilhado pelo povo do cacique, xinga umas coisas, mas ninguém presta atenção porque na hora a bateria quebra tudo na síncope do carnaval.

Parte da bateria caciqueana (2003) – Acervo do Centro de Memória do Cacique de Ramos

Continuo sem ouvir nada. Dona minha mãe vai me quebrar. Vai ser pior do que a vez que fui pra casa do Lindinho escondido, ela desesperada me encontrou e me surrou com vara de goiabeira o caminho de volta todo. E é pertinho, mas parecia que eu andei a Uranos umas cinco vezes apanhando.

A coroa me olha serião. Vacilei. Nem devo apanhar não, vai ser pior. Já tô em lágrimas. Vou ser deserdado e nunca mais vou poder pisar em nada do Cacique. Tia Jorgina se aproxima e me assusto, quem chora é ela. Dona minha mãe me abraça, como que orgulhosa por eu ter conseguido me virar no furdunço do carnaval carioca. Nos abraçamos muito forte e aos poucos começo a ouvir novamente o coro que embala nosso carinho.

— É o Cacique! Sim é o Cacique de Ramos, planta onde em todos os ramos cantam passarinhos nas manhãs…

A felicidade reina enfim na folia caciqueana. Ainda, dengo de mãe é tudo. Aperto senhora dona minha mãe mais firme. Não quero nunca soltar essa coroa. Obrigado por me apresentar o encanto do Cacique. Te gosto demais.

Sobre como semeamos novos guardiões da poesia

Esse pequeno conto é um ensaio-desafio de como criar memórias para as novas gerações a partir de tradições que compartilhamos. O embrião desse texto nasce com minha visita ao Cacique de Ramos em uma feira literária ainda esse ano. Dividindo o espaço e o tempo do Cacique com estudantes de diferentes faixas etárias, fiquei pensando sobre como estamos semeando a geração passada no terreno fértil da geração que está por vir. O samba talvez seja o maior expoente da subjetividade negra no último século. É fato que passamos por tempos de mudança, onde outros gêneros ganham destaque. Contudo, como bem sabemos o samba agoniza, mas não morre. Então pegando a deixa da Flicacique, teço aqui o encontro entre o meu fazer literário, dando ênfase a ludicidade que anima os jovens, com toda a ancestralidade que encanta os baluartes do samba. O mais velho Joel Rufino afirmou sem titubear que o Cacique é um caso exemplar do movimento negro. Para mim, não existe movimento sem continuidade e é por isso que temos que prezá-la, qualquer memória só se faz viva quando é partilhada. Acredito que são nesses encontros de diferentes gêneros e linguagens que vamos semear os novos guardiões da poesia caciqueana. Diante disso, tive a coragem de fazer o empréstimo de canções memoráveis como Caciqueando, Doce Refúgio, Prazer da Serrinha e Te gosto. Espero que esse pequeno conto seja um convite à novas gerações a se incumbirem de regar a velha tamarineira ainda muitos anos porvir.

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Sobre o autor

Marco Aurélio da Conceição Correa é pedagogo, escritor e pesquisador. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro, doutorando em educação (ProPed-UERJ) e pósgraduado em ensino de história da África (PROPGPEC-CP2). Coordena a Escola Criativa Audiovisual Àwòrán, onde ministra aulas de introdução a roteiro e escrita criativa. Organiza o CineMGH, projeto que realiza exibições, formações e eventos nas comunidades do complexo de Manguinhos e outras periferias do Rio de Janeiro. É autor dos livros Cinemas afro-atlânticos e Necropoéticas e outras histórias.