Cacique de Ramos: 
seis décad​as de carnaval

avenidas

Um bloco de embalo

No carnaval de rua, a palavra “bloco” remete à ideia de um grupo que desfila animadamente e de forma compacta. Quando o Cacique de Ramos surgiu, e se afirmou, entre as décadas de 1960 e 1970, a noção de “bloco de embalo” era plenamente utilizada no carnaval do Rio de Janeiro. Situados entre os blocos de “sujo” e os de enredo, os de embalo ocupam um meio termo: evoluem com liberdade, sem obrigatoriedades, regulamentos ou cronometragem, mas para participar do desfile é preciso trajar a fantasia oficial ou as cores da agremiação. Possuem símbolos próprios, bandeiras, estandartes, alguns usam a expressão “grêmio recreativo” e não é incomum que tenham sede fixa e atividades fora do carnaval. Além disso, brincam ao som de bateria e de sambas autorais, ou seja, feitos especialmente para a agremiação. A partir dos anos 70, as entidades passaram a ser chamadas também de "blocos de empolgação”. Atualmente, em 2022, essa definição de bloco parece estar cada vez mais em extinção em um carnaval de rua no qual novas formas de brincar vêm surgindo.

Cacique de Ramos em 1965

As avenidas do Cacique

Um termo é muito popular entre os sambistas dedicados ao carnaval: avenida. A palavra faz menção às ruas onde acontecem os desfiles e simboliza todo o ritual envolvido na apresentação de um bloco de rua. Estar na avenida é um momento único, aguardado durante um ano inteiro, no qual cada folião anônimo é um destaque. O Cacique de Ramos já teve várias avenidas. Seu primeiro desfile foi ainda em seu local de origem, na Avenida Nossa Senhora das Graças, em Ramos. Bira Presidente não esconde de ninguém que o sonho daqueles jovens era brilhar no grande carnaval do Centro da cidade do Rio de Janeiro. Por isso é que logo em 1963 o Cacique já desfilava na Avenida Rio Branco, modesto com suas centenas de figurantes diante do já gigante Bafo da Onça. Aliás, nesse ano o Bafo passou por cima do Cacique, obrigando o pequeno bloco de índios a se espremer nas laterais da rua!

O sucesso espontâneo do samba “Água na boca”, lançado nos ensaios do Cacique no pré-carnaval de 1964, fez com que o bloco incorporasse milhares de componentes e passasse a ocupar a Avenida Presidente Vargas. Podemos dizer que nessa artéria é que o Cacique de Ramos firmou seu nome e se tornou um fenômeno de multidão ao alcançar crescentes números de adeptos que variaram, ao longo dos anos, entre 3.000 e 10.000 integrantes.

A Presidente Vargas e imediações viram surgir uma das páginas mais originais do carnaval de rua do Rio: a rivalidade com o Bafo da Onça. O bloco do Catumbi era o senhor do espaço, reconhecido por seus bons sambas e pela animação dos seus componentes trajados nas cores da pele do animal que lhe empresta o nome. O fato é que já em 1965 o Cacique era considerado pela imprensa carioca como o adversário por excelência do Bafo. A partir daí, diversas escaramuças foram registradas entre componentes dos dois blocos, cada um lutando para afirmar que o seu era o melhor, o maior, o mais bonito, o mais cadenciado, com os melhores sambas! Essas brigas e provocações duraram até pelo menos a segunda metade dos anos 80: dali em diante as onças começaram a enfrentar sérias dificuldades e foram minguando. É preciso dizer que muito dessa rivalidade foi, na verdade, parte de um grande folclore incentivado pela imprensa e pelos dirigentes das duas agremiações.

As transformações urbanas da cidade do Rio também afetaram os desfiles do Cacique. Nos anos de 1974 e 1975, o bloco teve de deixar a Presidente Vargas em virtude das obras de construção do Metrô. Nesses anos, os desfiles se deram na Avenida Presidente Antônio Carlos. Sempre desfilando domingo, segunda e terça, entre 1976 e 1983, o Cacique se dividiu entre as Avenidas Rio Branco e Presidente Vargas. Em 1978, incorporou mais um território: a Rua Marquês de Sapucaí, na qual desfilava em um dos dias de carnaval, quase sempre o último. A rua está situada na Praça XI, berço do samba, para onde toda a programação de carnaval do Rio foi levada. Isso no tempo em que as arquibancadas eram desmontáveis, antes da construção da Passarela do Samba Darcy Ribeiro, o popular Sambódromo, em 1984.

O Cacique de Ramos participou da inauguração do Sambódromo! Um desfile memorável que contou, inclusive, com a madrinha da agremiação, Beth Carvalho, brincando com os foliões caciqueanos na avenida. No ano seguinte, a expectativa era reprisar o desfile na Sapucaí, só que a velha rivalidade com o Bafo da Onça não deixou. As onças estavam no seu território e aprontaram uma para os índios: enrolaram na avenida, demorando horas: o Cacique ficou preso na concentração e desistiu de desfilar.

De 1985 até 2014, o Cacique desfilou exclusivamente na velha Avenida Rio Branco. Nessa fase, o bloco viveu altos e baixos. Nos anos 90 e 2000, o número de componentes caiu drasticamente. O carnaval dos blocos de embalo deixou de atrair o mesmo interesse de décadas passadas. Mas os dirigentes e componentes do Cacique foram resistência: apesar de todas as dificuldades, o bloco continuou saindo nos três dias de folia. Por volta de 2011/2012, após o cinquentenário da entidade, podemos dizer que uma nova fase vem sendo escrita. Os desfiles da agremiação tornaram a crescer, novos componentes foram engajados, novas alas foram criadas e o Cacique voltou ainda mais forte. Após 2014, novamente obras ligadas ao transporte público fizeram o Cacique mudar o local de desfile, pois a Rio Branco foi ocupada pelo VLT (Veículo Leve sobre Trilhos). Em 2015 e 2016, a agremiação desfilou na Avenida Graça Aranha. De 2017 em diante, o carnaval dos blocos de embalo foi transferido para a Avenida Chile, onde permanece até a atual data. 

Ex-passista Cacilda fala sobre o Cacique dos anos 60 - Projeto Memória Caciqueana - Acervo Centro de Memória do Cacique de Ramos

Chopp fala de desfiles antigos do Cacique e brincadeiras nas avenidas
Projeto Memória Caciqueana - Acervo Centro de Memória do Cacique de Ramos

Waltinho, folião do Cacique de Ramos nos anos 60 e 70, fala do carnaval do bloco
Projeto Memória Caciqueana - Acervo Centro de Memória do Cacique de Ramos

O desfile de 1972 captado para o filme "Amor, carnaval e sonhos'' , de Paulo Cesar Saraceni

Ritual

É hora do desfile: multidão, empurra-empurra, tensão, medo, ansiedade, alegria, amores, beijos, brigas, porres, encontros, amizade, felicidade. Essa profusão de ações e sentimentos, muitas acontecendo ao mesmo tempo, é a tônica do desfile caciqueano há décadas. Para alguns, hora de um ritual situado entre o religioso e o profano.

Personagem único desse momento: Bira Presidente, dirigente máximo da entidade há seis décadas. Ele percorre toda a avenida, inspeciona cada detalhe, estimula as alas, orienta seus diretores, dá ordens de toda a natureza, refaz o posicionamento do bloco. É o ápice da sua liderança, no qual faz valer o seu papel de guia daquela multidão de índios. Um momento esperado por todos há anos é o discurso do Presidente. Na fala, certamente uma crítica às autoridades oficiais que não ofertam as condições ideais para o desfile das agremiações carnavalescas populares, aliadas a muitas palavras de força e agradecimento aos componentes do bloco. Com o discurso, está oficialmente aberto o carnaval caciqueano. A bateria rufa: começou o desfile e por mais um ano o Cacique de Ramos pisa forte na avenida! 

Discurso de Bira Presidente, carnaval de 2001
Acervo Centro de Memória do Cacique de Ramos

Performance

O jeito como os foliões do Cacique desfilam nas avenidas é algo em permanente reinvenção. No entanto, desde o início a identidade carnavalesca do bloco - indígena estilizado - influenciou a performance dos seus integrantes. A presença desse personagem no carnaval carioca remete aos cordões de índios que do século XIX até meados do século XX ocupavam as ruas fazendo apresentações cheias de vigor. Desde que “desceu” para desfilar no Centro da cidade do Rio de Janeiro, as exibições dos índios caciqueanos chamaram atenção pela movimentação vibrante.

Não há dúvida em dizer que nas avenidas os foliões incorporam um personagem. Gradativamente, diversos jogos cênicos foram sendo agregados pelos componentes. Lá pelos anos 60, alguns praticantes de musculação - àquela época longe de estar disseminada entre a população em geral como hoje - desfilavam no bloco e gostavam de fazer a seguinte brincadeira: em uma demonstração de destreza física, os fortões levantavam sobre a cabeça componentes menores. Nessa época também era comum a “pirâmide humana”: os foliões subiam uns nos outros até formar aquele desenho. Brados, saltos, gritos de guerra - “lê lê o Cacique é o bom!”- coreografias, rodas: diversos elementos foram usados pelos caciqueanos em suas performances da avenida. Uma brincadeira atravessa os tempos e permanece até os dias atuais, a “invasão”: segurar e depois soltar os componentes, que então saem correndo, pulando e gritando simultaneamente, em uma imitação carnavalesca do que seria um ataque indígena. Um elemento que vem dessa época é o uso de tamancos na indumentária dos componentes: os calçados eram usados nas mãos para marcar o ritmo dos sambas. Aliás, escute a gravação de “Vou festejar” no disco “De pé no chão” (1978) da cantora Beth Carvalho: estão lá os tamancos caciqueanos. Na década de 90, novos elementos foram inventados pelas alas, como o uso de fogueiras, fogos de artifício e sinalizadores.

Desde sua fundação até meados dos anos 80, homens e mulheres desfilavam separados, o que deixou de acontecer posteriormente. Na frente, elas; e fechando o desfile, eles. Outro elemento que precisa ser registrado é o carro alegórico que o bloco traz desde meados dos anos 60, sempre revestido de um motivo que remete à identidade visual caciqueana. Em cima dele é que desfilam as integrantes da corte de carnaval: a rainha, as princesas e as musas. São as belas moças selecionadas em concursos ou por indicações, e que durante um ano inteiro representam o Cacique não só no desfile oficial, como também em apresentações da agremiação.

Durante três décadas, o Cacique de Ramos contou com a Ala da Capoeira, criada na década de 1960 e extinta por volta de 2017. O principal expoente desse segmento é Mestre Mintirinha, que durante anos foi seu líder. A Ala chegou a mobilizar algumas dezenas de componentes. Durante o desfile, trajados nas cores da agremiação, os componentes vinham jogando capoeira, como em uma roda tradicional, ao som de berimbaus e pandeiro. Cheios de destreza física, a Ala da Capoeira foi, por certa época, a responsável pela segurança dos desfiles do bloco. 

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