Cacique de Ramos:
seis décadas de carnaval
Nei Lopes e Luiz Antonio Simas reconhecem na obra “História social do samba” que, entre as décadas de 1930 e 1960, boa parte dos sucessos carnavalescos nasceu em terreiros de escolas de samba ou blocos do Rio de Janeiro. Os sambas de quadra eram feitos para serem executados nos ensaios e desfiles dos blocos, ou apenas nos preparativos para o carnaval (caso das escolas) e se caracterizavam por serem curtos e apresentarem forte impacto melódico. O mesmo Nei também expressou a relevância desses sambas ao dizer que: “Samba-enredo é outro papo, pois é música funcional. Bom mesmo era quando a gente abria o peito no meio da rua cantando 'Neste carnaval não quero mais saber/ de brigar com você...'". O trecho faz menção aos versos do samba “Água na boca”, de Agildo Mendes, sucesso do repertório do Cacique de Ramos, lançado em 1964. Como bom bloco de embalo, o Cacique criou um repertório de sambas de quadra, aproveitados tantos nos ensaios da agremiação (realizados até a década de 1980) quanto em seus desfiles carnavalescos.
A produção e circulação desses sambas têm uma trajetória própria dentro do Cacique. Do surgimento espontâneo (1961) até sua afirmação como bloco de multidão (meados dos anos 60) prevaleceram exclusivamente sambas autorais (ou seja, que não fossem dos repertórios de artistas ou de outras agremiações) criados pelos compositores identificados com a agremiação. O processo de lançamento e escolha era realizado de forma espontânea nos ensaios: iam para a avenida os mais cantados na quadra, em um processo de quase instintivo.
Notadamente na primeira metade da década de 1970, o Cacique passou a realizar concursos internos para a escolha dos sambas que seriam levados à avenida. Sem a rigidez característica das escolas de samba do período, participavam tanto compositores da agremiação, quanto sambistas “de fora”, e o júri era composto por membros do próprio Cacique, jornalistas e sambistas de outras agremiações. Desse processo, saíam as 2 ou 3 músicas inéditas, e também eram incluídos, nos desfiles, sambas de anos anteriores que por ventura tivessem se destacado.
O samba “Vou festejar” (Dida/Neoci/Jorge Aragão) é um marco do repertório de carnaval do Cacique: embora já fosse cantado internamente no bloco há dois anos, foi a inclusão no disco “De pé no chão” (1978), da cantora Beth Carvalho, que deu grande visibilidade ao samba. A partir de então, com o crescimento do pagode de meio de ano do Cacique e o surgimento de sambistas projetados a partir dessa agremiação, o repertório de carnaval começou a incorporar sambas lançados por artistas como a própria Beth, Fundo de Quintal e Mussum. Algumas dessas músicas eram feitas especialmente ao “estilo Cacique de Ramos”, ou seja, com as características de um desfile da agremiação. Um dos mais exitosos exemplos é “Caciqueando”, samba de Noca da Portela que homenageia o bloco. Portanto, passa a existir um movimento de retroalimentação, pois também era muito interessante para esses compositores e cantores terem seus sambas divulgados pelo Cacique. Pela década de 1980 adentro, progressivamente, os concursos para escolha de samba foram perdendo força: aconteciam e as músicas selecionadas não eram levadas para avenida, ou simplesmente não ocorriam.
Nas décadas de 1990, 2000 e 2010, os desfiles do bloco deixaram de atrair a mesma atenção de antes. Assim é que a agremiação acabou reduzindo o repertório que vai para avenida a apenas alguns poucos sambas cristalizados na memória de forma a facilitar o contato com o público. Nos últimos anos, ele foi enriquecido pelo samba-enredo “Vou Festejar! Sou Cacique, Sou Mangueira” (Igor Leal/ Lequinho/ Jr. Fionda/ Paulinho Carvalho), da Estação Primeira de Mangueira, de 2012, quando a agremiação elegeu o Cacique como enredo do seu carnaval.
Mas o Cacique de Ramos tem um “baú” de sambas que são seu patrimônio musical!
Adilsinho, ex-diretor do Cacique de Ramos, fala de lançamentos de sambas na quadra, anos 60-70.
Projeto Memória Caciqueana - Acervo Centro de Memória do Cacique de Ramos
Noca da Portela fala sobre Caciqueando e a composição de sambas de carnaval com o estilo do Cacique de Ramos
Projeto Memória Caciqueana - Acervo Centro de Memória do Cacique de Ramos
Mas por que não cantamos outros bons sambas do passado? O fato é que o Cacique de Ramos deixou de criar oportunidades (como ensaios) nas quais o componente pudesse ter acesso a eles. Desse modo, surgiu uma lacuna na memória musical dos caciqueanos de gerações mais recentes. Manter vivo um patrimônio exige um trabalho constante de pesquisa e difusão. Desde que o Centro de Memória foi criado, sonhávamos com uma ação: e se esses sambas voltassem a ser cantados pela agremiação? Partindo dessa ideia produzimos o conteúdo que apresentamos na seção. Foram selecionados 11 sambas do repertório de quadra/carnaval do Cacique entre os anos de 1962 e 1987 por meio de pesquisa em discos, acervos de instituições públicas e também recorrendo à memória de antigos componentes.
Nosso objetivo era realizar apenas um registro documental envolvendo o “carro de som” (cantor, violão e cavaco) e alguns ritmistas da bateria. No entanto, uma constatação: sambas dessa natureza ganham relevância quando associados à performance, afinal foram feitos para o canto e a dança coletivos! Pensando nisso, é que programamos uma espécie de ensaio-geral no dia 09 de abril de 2022: alguns componentes das alas do Cacique e três representantes da corte caciqueana foram convidados para dançar e brincar ao som deles. Os foliões tiveram acesso ao repertório previamente, no entanto foi a magia do momento que fez a diferença, e os sambas foram se espalhando. O que fizemos foi devolver à “boca” dos foliões músicas apagadas pelo tempo. Veja abaixo!
Repertório:
Não tem mais jeito (Arnô Jardim) - Entre 1962 e 1963 | Querem me derrubar (Chiquita) - Entre 1962 e 1965 | Atabaque no samba (Chiquita) - 1964 | Vou deixar cair (Mendes) - 1968
Chinelo Novo (Niltinho Tristeza/João Nogueira) - 1971 | Bate na viola (Dida/Everaldo da Viola) - 1972 |Meu pai Oxalá (Noca do Cacique/Amauri) - 1976 | Sai da frente (Luis Carlos/Vitória) - 1977
Auê auê *título presumido (autor desconhecido) - anos 70 | Toque de malícia (Jorge Aragão) - Entre 1984 e 1986 | Cacique de Ramos (Noca da Portela/Sereno) - 1987
* “Não tem mais jeito”, “Querem me derrubar”, “Meu Pai Oxalá” e “Auê auê” são sambas inéditos, nunca registrados; os demais já haviam sido gravados.
Os sambas que o Cacique trouxe a público, entre os anos 60 e 80, apresentam variedade de temas. O amor, com seus encontros e desencontros, sobretudo no carnaval, é um assunto muito presente. Também outros, como o estímulo ao extravasamento que a festa convida. Uma temática por demais explorada é a exaltação ao próprio bloco: suas qualidades, seus símbolos, suas cores, a beleza e graça das componentes femininas e o paralelo com a força indígena. Existe uma categoria que é um capítulo peculiar do repertório de carnaval: os sambas de provocação. Eles eram feitos para “mexer” com o bloco rival, o Bafo da Onça, e abusavam da linguagem da afronta ao explicitar que o Cacique estava pronto para o embate da avenida. Mas o Bafo também respondia, produzindo, do lado de lá, as provocações.
A indústria do disco se interessou pelo Cacique após o sucesso espontâneo do samba "Água na boca” no carnaval de 1964, quando foi convidado a gravar seu primeiro long play (LP), com 12 faixas. Nele, canta Adilson, intérprete do bloco, e toca um grupo de ritmistas da agremiação. Dessa data até 1980, o Cacique teve sua produção musical divulgada em 6 LPs (12 faixas), 4 compactos simples (uma faixa de cada) e 1 compacto duplo (duas faixas de cada lado). Também participou de 4 discos coletivos que contavam com diversas agremiações ou intérpretes. Nesse tempo, alguns intérpretes gravaram sambas do Cacique e inseriram o nome da agremiação na capa.
A partir dos anos 80, o bloco não foi mais convidado a gravar discos, e já passou a contar com outras plataformas de divulgação para seus sambas, tais como os trabalhos dos artistas oriundos do Cacique. Abaixo uma parte da discografia da própria agremiação, acrescida de 3 discos de cantores externos.
No primeiro desfile, o Cacique desfilou ao som de um conjunto musical misto de percussão, sopros e metais. A sonoridade era típica das bandas e blocos do carnaval suburbano. Logo em seguida, a bateria propriamente dita foi constituída por uma turma de ritmistas de Ramos, muitos com ligações com a Imperatriz Leopoldinense e oriundos do Morro do Alemão e da Vila Cruzeiro. O grande arregimentador da bateria caciqueana do período foi Dinho, mestre do segmento até a década de 1970. Ele se notabilizou pela execução de um apito que usava não apenas para conduzir a bateria, mas também para realizar desenhos melódicos sonoros, verdadeiras bossas. Esses meneios foram dando, ainda nos anos 60, uma identidade própria à sonoridade de carnaval do Cacique. Outros exemplos de experimentações foram os usos de atabaques, mencionados inclusive em sambas da agremiação (“venham ver para crer/a batida do atabaque faz até morto se mexer”- Não tem mais jeito - Arnô jardim - 1961/1962), e berimbaus. A bateria do Cacique ficou reconhecida por imprimir um andamento mais acelerado e intenso, apropriado à evolução vibrante dos índios na avenida.
Houve um tempo em que os ritmistas oriundos das escolas e blocos tinham grande visibilidade. Eram verdadeiras estrelas projetadas pelas comunidades, sempre mencionados pela imprensa especializada como um chamariz para atrair público aos ensaios e apresentações. O primeiro ritmista projetado a partir do Cacique de Ramos foi Miguel do repinique, memorável batuqueiro de Ramos. Na década de 60, Miguel foi o grande ás da bateria do bloco, encantando a todos com seus solos na avenida e shows em boates e teatros. Nos anos 70, Fujico, também no repinique, se projetou como um exímio solista. Por essa época uma grande aquisição da bateria do Cacique foi Milton Manhães, o Pezão, músico oriundo do Bafo da Onça, que passou a conduzir o segmento da agremiação junto com Dinho. Na década de 70, Manhães também foi criador da roda de samba do Cacique, construindo, assim, um elo entre o meio de ano e o carnaval.
Os batuqueiros da Vila Cruzeiro continuaram fornecendo componentes para a bateria até 2014. Posteriormente a isso, o segmento foi remodelado e aberto para a inserção de ritmistas de outras procedências. Sob a orientação de Mestre Bruno Rocha, a agremiação passou a realizar oficinas de formação de novos componentes, experiência que a longo prazo se mostrou bastante exitosa. Desde 2019 comandada por Mestre Carlos Noronha (Xula), as oficinas permaneceram e se mostraram como uma oportunidade de criar e moldar “pratas” da casa e integrá-las a ritmistas de outras gerações. Digno de nota é que muitos desses novos formados pelo Cacique começaram a sair em baterias de escolas de samba.
A bateria chegou aos 60 anos do Cacique de Ramos em sintonia com o passado rítmico da agremiação e atenta aos desafios que a renovação de público impõe.
Miguel do repinique fala da bateria do Cacique de Ramos nos anos 60
Projeto Memória Caciqueana - Acervo Centro de Memória do Cacique de Ramos
Milton Manhães fala sobre sua participação na bateria do Cacique e as características rítmicas do segmento
Projeto Memória Caciqueana - Acervo Centro de Memória do Cacique de Ramos