Cacique de Ramos:
seis décadas de carnaval
O Cacique de Ramos adota desde 1961 o índio como símbolo da agremiação. A origem do tema do bloco também é objeto de mais de uma versão narrada por seus fundadores. Em algumas delas, a escolha do nativo estaria ligada à impressão de força que se queria transmitir: o bloco seria de sambistas-foliões de alto nível, portanto todos caciques! Um outro ponto de vista associa a escolha do nome e do tema ao fato de vários dos fundadores terem sido batizados com nomes indígenas, isso por serem oriundos de famílias ligadas à Umbanda, religião que, dentre outros aspectos, tem os caboclos enquanto entidades. Logo o Cacique foi consagrado a um desses caboclos e, como expressão da religiosidade cruzada típica das macumbas cariocas, tem como seu padroeiro São Sebastião, um santo católico europeu cuja devoção devemos aos portugueses, e que em terras cariocas foi sincretizado com orixá iorubano Oxóssi, deus caçador e protetor das matas, por isso associado aos caboclos.
Afinal, em qual índio esses caciqueanos das primeiras horas se inspiraram? No início dos anos 60, não existiam tantos recursos tecnológicos que permitissem acesso a uma variedade de referências. Para aquela geração de jovens, a imagem do índio mais próxima era a dos “peles vermelhas” norte-americanos representados em filmes de faroeste que inundavam anualmente os cinemas suburbanos. É certo que essas representações nem sempre eram positivas e abusavam dos estereótipos. Talvez, naquele período, nomes e representações de nações estadunidenses como comanches, apaches e cheyennes fossem mais próximas do imaginário popular do que imagens de nativos brasileiros.
Desde 1962, encontramos registros que mostram o uso, pelo bloco, da efígie de um indígena ornado com um cocar muito semelhante ao de algumas nações dos EUA. Na sua primeira década, o Cacique não tinha ainda um logotipo certo e variaram as imagens utilizadas. A partir da primeira metade dos anos 70, se consolidou um escudo específico, com o rosto do índio, que nos anos 90 foi atualizado e permanece até os dias atuais. Hoje, aquele logotipo mais “antigo” é utilizado pelo Centro de Memória da agremiação.
Ao longo da sua trajetória o Cacique já teve bandeira e estandarte. A bandeira veio primeiro: surgiu nos anos 60 e foi preservada por décadas, até cair em desuso na década de 1990. Nela sempre prevaleceram o preto e o branco, cores iniciais do bloco, mesmo quando a agremiação já havia adotado o vermelho. O estandarte veio em substituição, colocou a efígie do índio no centro e deu destaque à cor rubra. Tanto a bandeira quanto o estandarte sempre foram empunhados na avenida por pessoas destacadas para essa função, apenas com intuito recreativo, visto que o bloco nunca participou de concursos.
Como mencionamos, as primeiras cores do Cacique foram o preto e branco. Tanto que um samba das primeiras horas do bloco, por volta de 1961-1962, mencionava: “este é o preto e branco sensacional…” (Não tem mais jeito - Arnô Jardim). Ainda no carnaval de 1970, o bloco cantava “visto a minha tanga preto e branca/trago colorido ao carnaval” (Quem sou eu - Everaldo da Viola) O visual alvirrubro caciqueano conquistou as avenidas durantes duas décadas: de vermelho apenas o rosto do índio no logotipo da agremiação, mesmo assim de forma tímida. Essa cor, pouco a pouco, foi ganhando espaço nos desenhos e grafismos das fantasias do bloco. No início dos anos 80, o Cacique já era um bloco tricolor (preto, vermelho e branco). Na fotografia da capa do primeiro disco do Grupo Fundo de Quintal - criado nos pagodes da casa - os integrantes usam camisas listradas nas três cores expressando a vinculação à agremiação.
A fantasia do Cacique de Ramos é um ponto alto da identidade visual do bloco. Mas qual índio ela representa? Todos e nenhum. O visual do Cacique nunca foi uma recriação fidedigna de nenhum símbolo específico: trata-se, na verdade, de uma reinvenção de tradições variadas inspiradas nos caboclos da Umbanda, no índio brasileiro e no nativo norte-americano apresentado pela cultura pop de massas, como o cinema e as histórias em quadrinhos. Um processo de antropofagia cultural: mistura de referências com a eclosão de algo novo, único, original. No entanto, ela variou ao longo dos anos.
No primeiro ano, a fantasia ainda era de pano, mas logo em seguida o material foi modificado e a diretoria optou por fazê-la em um tecido que imita o couro, a napa. Essa era uma grande novidade: mais fácil de limpar e apresentava grande maleabilidade aos diferentes corpos. Um nome toma vulto como o grande fixador do modelo de fantasia que tornou o Cacique conhecido: o artista plástico Romeu Vasconcelos. Ligado ao bloco desde 1964, dois anos depois ele apresentou um modelo de indumentária que veio para ficar: sobre a napa branca o saiote e o colete eram pintados em tinta vinílica preta e já confeccionados recortados, deixando apenas uma sombra para a marca da tesoura. A cada ano Romeu modificava os elementos desenhados na fantasia, como por exemplo machados, lanças, cabanas, estrelas, luas e outros grafismos diversos. Toda essa produção era artesanal, feita na própria quadra da agremiação, onde também eram vendidas as roupas. Digno de nota é que as fantasias vinham sempre com o ano de sua execução, o que incentivava que os foliões adquirissem a indumentária daquele carnaval. Entre os anos 60 e 90, a característica era que as mulheres do bloco usassem cocar e os homens uma faixa em couro escrita “Cacique de Ramos” com algumas penas. Destaca-se o uso de machadinhas, lanças e flechas em uma recriação do imaginário guerreiro indígena.
Nos anos 70, o Cacique começou a abrigar foliões que desfilavam com indumentárias diferentes. Esse grupo passou a inserir tecidos e penas nas suas fantasias, e acabaram sendo reconhecidos como índios de destaque. Surgiu a Ala da Ráfia, cujas fantasias ganhavam adornos com esse material, fugindo do padrão da napa. Com o avançar dos anos 70 e 80, o Cacique autorizou a inserção de novas turmas de amigos que criaram alas com nomes indígenas. Eles começaram a customizar fantasias à sua maneira: inseriram a manga e a calça compridas, perucas, calçados, dentre outros adornos. A fantasia de napa, adquirida exclusivamente na agremiação, continuou sendo vendida, mas gradativamente caiu em desuso. Nos primeiros anos da década de 2000, o bloco comercializou a clássica indumentária pela última vez. Daí em diante prevaleceram os novos estilos de fantasias das alas. As roupas são criadas e confeccionadas pelas próprias alas, que se responsabilizam pela venda. Já nos anos 90, foi criada a Cura Ressaca, uma ala de camisas ornadas nas cores do Cacique, tendo como símbolo um índio estilizado bebendo cerveja.