Cacique de Ramos:
seis décadas de carnaval
As origens do Grêmio Recreativo Cacique de Ramos remontam à união de agrupamentos carnavalescos de Ramos, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Em um bairro cortado pela linha férrea, esses núcleos eram todos originários do lado direito, tomando por posição quem vai de trem da Central do Brasil em direção a Duque de Caxias. Foi fundado despretensiosamente por um grupo de jovens na faixa dos 20-25 anos, cheios de vontade de curtir o carnaval, arranjar namoros e cantar sambas nos três dias de folia. Eles já saíam, cada qual com sua galera, brincando pelas ruas dos bairros da zona da Leopoldina desde o final dos anos 50. A versão mais pactuada sobre a fundação do Cacique indica que em 1961 os grupos encabeçados pelos irmãos Ubirajara (Bira) e Ubirany Félix do Nascimento, por Aymoré do Espírito Santo e por Walter “Tesourinha” Oliveira se juntaram para criar um bloco único. Diferentes detalhes perpassam esses momentos iniciais: na memória de alguns, na verdade, o bloco ainda seria denominado Cacique Boa Boca, e só no ano seguinte adotou a denominação que permanece até os dias atuais. As diversas disputas em torno da memória da fundação tratam de conferir para cada um dos grupos fundadores a preponderância sobre esse ou aquele aspecto. O fato é que a junção das três turmas, naquele ano, é a mais aceita para a gênese do bloco, cuja data oficial de fundação é 20 de janeiro, dia de São Sebastião, escolhido padroeiro da agremiação.
Para entender a criação do Cacique é preciso perceber o que era o carnaval carioca - e o de Ramos, especificamente. O bairro fervilhava nos dias de Momo e, desde o início do século XX, abrigou diversos ranchos, blocos, escolas de samba e clubes recreativos, sem contar o banho de mar à fantasia na Praia de Ramos. O local principal que congregava os desfiles era a Rua das Missões, que no início dos anos 60 teve seu nome alterado para Avenida Nossa Senhora das Graças. Portanto, os jovens que fundaram o Cacique estavam dando prosseguimento a práticas muito disseminadas no local de origem. Não à toa, todos eram descendentes de famílias negras festeiras e ligadas ao samba. Os Félix do Nascimento se inspiravam no pai Domingos, boêmio da antiga, amigo de sambistas e chorões, diretor de um bloco do bairro denominado Boi da Coroa. A família Oliveira era numerosa e composta por diversos bons sambistas e carnavalescos. Outro traço aproximava esses núcleos: a vinculação à religiosidade afro-ameríndia. Cada um dos três grupos era ligado à Umbanda ou ao Candomblé. A proximidade entre os batuques sagrados e profanos era parte da vivência daqueles jovens e suas famílias. Dessa mistura nasceu o Cacique de Ramos.
Bira Presidente fala dos primórdios e consagração do Cacique de Ramos.
Projeto Memória Caciqueana - Acervo Centro de Memória do Cacique de Ramos
Os dois primeiros desfiles do Cacique foram ainda no ambiente doméstico, ou seja, nas ruas do bairro de Ramos. Com a adesão espontânea de cada mais pessoas, logo aqueles jovens organizados viram na brincadeira algo que poderia reforçar os laços de unidade entre eles ao longo do ano. No início dos anos 60, era muito forte o que se denominava “recreativismo”. Clubes e associações abundavam por todos os cantos do Rio de Janeiro, muitas vezes oferecendo lazer a camadas da população que não tinham acesso a outros espaços da cidade. Assim é que, gradativamente, a partir de 1961, aquelas dezenas de homens e mulheres ligados ao Cacique de Ramos começaram a programar eventos em diversos clubes da zona da Leopoldina com o propósito de mantê-los coesos e arrecadar fundos para a manutenção das atividades do bloco. Prova dessa adesão ao recreativismo é que o nome oficial do Cacique, desde essa época, é “Grêmio Recreativo”, e não “Bloco Carnavalesco”, indício de que seus líderes estavam empenhados em construir um ambiente de lazer para além dos dias de folia. Essa era sobretudo uma estratégia importante entre núcleos negros, proletários e suburbanos diante de uma sociedade racista e excludente: não é concidência que alguns fundadores do Cacique - como os irmãos Bira, Ubirany e Ubiracy - frequentassem o Clube Renascença, um vitorioso exemplo de entidade recreativa dos negros cariocas, e com ele tenham mantido relações por toda a vida.
Da fundação até 1967, o Cacique não teve uma sede fixa: ensaiava e fazia concursos, festas e bailes em diversos clubes da zona norte como o 30 de Maio (Penha), Greip da Penha, Cova da Onça (Brás de Pina), Associação Atlética de Ramos e o Clube Paranhos (Olaria). Ao mesmo tempo em que ganhava nome nas avenidas, nesse período, o Cacique também era notado como um ambiente de acolhimento e lazer. Um nome se destacava, Ubirajara Félix do Nascimento, ainda não conhecido pelo apelido que ganharia posteriormente, presidente da agremiação desde as primeiras horas. De 1967 até 1972, o Cacique teve uma sede fixa na rua Tenente Pimentel, em Olaria; em seguida mudou-se para Rua Uranos, 1326, em Olaria, espaço no qual surgiram memoráveis pagodes, sob as frondosas tamarineiras, que foram cenário para um novo movimento do samba carioca. A agremiação, já consolidada no carnaval, daí em diante se firmaria também como um celeiro da produção musical de meio de ano. Mas isso é assunto para outra exposição…
Em 1963, Bira e seus dirigentes levaram o Cacique para desfilar no Centro da cidade do Rio de Janeiro. O bloco ainda era dos amigos e familiares e já arrastava uma pequena galera. A avenida Rio Branco era o grande cenário, dominado pelo Bafo da Onça. A grande virada se deu em 1964, quando o samba “Água na boca”, do compositor Agildo Mendes, foi lançado nos ensaios do Cacique e fez sucesso no carnaval daquele ano. Tudo isso no boca a boca, espontaneamente. Após aquele carnaval, definitivamente, o Cacique passou a ser notado por foliões para além do bairro de origem. O carnaval de 1965 - ano de comemoração dos 400 anos de fundação do Rio de Janeiro - foi a consagração: “Água na boca” reprisou o sucesso, o Cacique - já desfilando com cerca de 3.000 pessoas - foi alvo de inúmeras matérias, participou de programas de rádio e televisão e foi considerado um campeão hors-concours do carnaval carioca.
Desde então, o Cacique de Ramos não parou mais: esteve em permanente reinvenção e foi se afirmando como uma página muito própria e interessante do carnaval de rua carioca. Ocupou espaços e avenidas diversas e coletivamente seus foliões criaram uma identidade visual e musical que vêm se transformando ao longo do tempo. Aos poucos, foi reconhecido como símbolo da inventividade foliã e genuína criação popular. A agremiação passou por apogeus, mas também por dificuldades financeiras e estruturais. No entanto, nunca deixou de desfilar nos três dias de carnaval, com exceção dos anos de 2021 e 2022, em virtude da pandemia do Covid-19.
Adilsinho, ex-diretor do Cacique de Ramos, fala dos primeiros anos da agremiação
Projeto Memória Caciqueana - Acervo Centro de Memória do Cacique de Ramos